2º Capítulo de Caçada

A espera terminou, e hoje, no dia de Samhain – ou melhor, Dia das Bruxas – venho aqui com o segundo capítulo da continuação de Vermelho Sangue – que, sinto dizer, será o último a ser divulgado. Então aproveitem e comentem, combinado? 😉

II: Instintos

Descemos para a garagem, onde só a moto do Jonas estava estacionada. Imediatamente, meus ouvidos pareceram se escancarar, e minha cabeça foi invadida por mil sons ao mesmo tempo, todos competindo pela maior altura, pra ver quem causava o maior incômodo. Telefones tocavam, carros passavam, pessoas roncavam, cachorros latiam, moscas voavam… era coisa demais pra processar. Não dava pra separar tudo na minha cabeça.
Ele me entregou um capacete – como se cair de uma moto fosse me causar algum dano! – e colocou outro na cabeça. O barulho que me incomodava diminuiu um pouco com a ajuda do capacete, mas ainda podia escutar com perfeição cada ruído mínimo. Subimos na moto e, com um controle remoto, Jonas abriu o portão. Ele ligou a moto, acelerou, e nós saímos para a noite.
Eu não sabia que horas eram, mas não parecia tão tarde. Minha nova e mais aguçada visão me revelava um céu multicolorido, mais incrível do que qualquer coisa que eu já tinha visto. Dava para ver que o céu ia do negro mais profundo até o mais tênue tom arroxeado, onde talvez ainda não passasse do crepúsculo em algum lugar. A camada de poluição sempre presente sobre a capital paulista era ainda mais evidente pra mim agora, uma nuvem tóxica e escura, fétida e perigosa. Eu conseguia discernir a poluição de todo o resto, como se fosse algo sólido tapando minha visão. Me perguntei como eu veria o céu caso aquela barreira de fumaça não existisse.
As poucas nuvens no céu de carpete eram, para mim, como partes embaçadas da noite, e eu conseguia enxergar através de algumas delas. Notei que cada estrela possuía um brilho singular, mas que aquela luz era fraca, tantas camadas tinha que atravessar para chegar até ali. E, enfim, procurei pela lua.
Era noite de lua crescente, mas meus olhos podiam enxergar mais além da parte iluminada. Eu via as crateras, as sombras, e o contorno sutil da parte que eu não deveria estar enxergando. Escutei turbinas, e a passagem de um avião, cuja silhueta eu podia ver perfeitamente apesar da altitude, me distraiu momentaneamente, passando por mim numa irritante câmera lenta. Incrível.
Então, nós paramos numa avenida desconhecida. Lenta e gradualmente, mas perceptível o bastante para a minha nova sensibilidade. Tiramos nossos capacetes e descemos da moto.
– Onde nós estamos? – perguntei.
– Bem longe. – Jonas respondeu, começando a andar pela larga avenida. Eu o segui. Nossos passos eram anormalmente rápidos e silenciosos, de um modo agradável. Eu não ia demorar a me acostumar com aquilo.
– E pra onde estamos indo? – insisti. A avenida era movimentada, e eu distinguia música em algum lugar à nossa frente.
– Sábado à noite, Beni, vamos pra balada!
– Hoje é sábado? – a informação me atingiu como um choque – Eu estou desacordada desde terça-feira?
– A transformação é uma coisa lenta! Seu coração só parou na quarta, e foi só então que você começou a mudar!
– E como você espera que eu entre numa balada sem cometer uma…chacina?
– Beni… – Jonas parou e se virou para mim, as mãos nos meus ombros – Relaxe. Quando você sentir o cheiro do sangue, se entregue aos seus instintos!
– E como se faz isso? – perguntei-lhe, duvidosa.
– Relaxando! – repetiu, e recomeçou a andar, me levando com ele – Seu corpo vai fazer tudo por você, e você vai sentir quando alguém captar mais sua atração que os outros. Aí você sai e procura um lugar escuro.
– Que simples!
– É bem mais simples do que parece! Eu vou estar por perto, se quiser me seguir. Apenas se deixe guiar.
Certo. Me deixar guiar.
Aquilo era nojento. Eu nunca me habituaria àquela parte do meu novo eu. A parte que me lembrava que, por amor, agora eu era um monstro.
Conforme nos aproximamos, o som das batidas da música eletrônica e das batidas de coração ficou mais e mais alto, beirando o ensurdecedor, enchendo meus ouvidos como se eles não estivessem lotados o bastante com os sons do mundo todo. Então veio o aroma; o doce e delicioso aroma do sangue de todos aqueles corpos, e eu me desliguei.
A boca encheu-se de água. A garganta ardeu e o estômago rugiu, ansiando por alimento. Cada fibra do meu corpo pareceu se arrepiar, reagindo ao sangue, tão próximo. Lutei para manter as presas no lugar, guardadas dentro da boca, e passei a sentir mais todo o resto de mim.
Meus traços se suavizaram e eu me senti poderosa. Num átimo, era como se a minha pele brilhasse: todos me olhavam. Inclusive Jonas, com um sorriso orgulhoso, enquanto nos colocava para dentro.
Então isso era seguir os instintos!
Entramos, e foi como se o tempo parasse enquanto nós atravessávamos a multidão que dançava e se agitava. O cheiro do sangue ali dentro era mais forte do que em qualquer outro lugar, e mais intenso do que qualquer outra coisa. Notei que cada corpo tinha um aroma único, como o brilho das estrelas no céu. E que, por onde passávamos, cabeças viravam para nos observar.
Segui Jonas até próximo da saída de emergência. Ficamos ligeiramente afastados, imóveis e silenciosos, como dois estranhos deslocados naquele ambiente. Os minutos pareciam horas intermináveis enquanto o barulho ensurdecia meus ouvidos, o cheiro enlouquecia meu estômago e a sede castigava cada parte do meu ser.
Olhei para o lado e vi Jonas sorrindo seu mais maravilhoso sorriso, mas ele não era dirigido a mim. Segui seus olhos sedentos e identifiquei uma mocinha estranha, ruiva e desengonçada, caminhando, hipnotizada, até ele. Foi então que senti. Ciúmes. E algo mais.
Minha atenção foi desviada para o lado oposto, como se alguém tivesse gritado o meu nome num tom mais alto do que o do resto do som. Uma garota mulata se aproximava de mim, tão encantada quanto a ruiva estivera, só tendo olhos na minha direção. Meu estômago rugiu, esperançoso, e eu dei meu sorriso mais meigo, sem saber de onde ele tinha vindo. O rosto da moça ruborizou, me fazendo ansiar ainda mais.
Dei um passo em direção à saída. Depois outro. E mais um. Cada movimento meu parecia perfeitamente natural e ensaiado ao mesmo tempo, embora eu não fizesse idéia de como estava fazendo aquilo. Pouco a pouco nós nos afastamos, ela me seguindo e reagindo a cada movimento meu, até que estávamos do lado de fora, na lateral da danceteria. Tudo estava escuro, mas eu a via perfeitamente bem. Tal como enxergava Jonas, olhando e sorrindo para sua vítima de um modo como eu nunca o vira fazer antes, ao mesmo tempo em que a colocava com delicadeza contra a parede.
Tentei conter o ciúme e dar atenção somente à morena que se aproximava, tentando me tocar. De novo, meu cérebro estava dividido entre a metade humana, que gritava contra cada ação minha, e a metade vampira, que não podia parar. Eu já tinha ido longe de mais.
Estendi a mão para ela, e a garota me imitou. Nossos dedos se tocaram, e eu senti sua pele, tão quente e tão frágil sob a minha. E então, não pude mais controlar nada.
Abri a boca e senti meus dois pares de presas se revelando, crescendo a partir da gengiva, à medida que o encanto se quebrava. Não dei tempo para a garota gritar ou se apavorar, nem mesmo de tentar lutar, de modo que eu não fosse forçada a fazê-la sofrer mais. Com uma mão, segurei seus braços, e com a outra, virei sua cabeça.
Dava para ver o sangue pulsando mais rápido graças ao medo, escutar a formação do grito que nunca saiu, sentir o cheiro da adrenalina sendo liberada no fluxo sangüíneo. Sem pensar duas vezes, cravei os dentes na sua jugular e suguei o sangue, tão quente, tão delicioso. Em um minuto, estava acabado, e a morena jazia, morta, aos meus pés.
Fechei os olhos para não ver o que eu tinha feito. Estava com nojo de mim mesma, mas apesar de tudo, eu me sentia bem. Saciada, controlada, aquietada. Eu era capaz de escutar a minha metade sã de novo. Abri os olhos outra vez, e Jonas pousava com cuidado o corpo da moça no chão. A cena fez voltar o meu ciúme.
– Você está bem? – ele me perguntou, e eu apenas assenti, sem dizer nada – Acho que ainda precisa de mais.
– Não! – exclamei, num tom urgente. Eu não queria matar mais ninguém.
– Pare de discutir comigo. Eu volto num segundo.
Esperei. Mal contei até dez e ele estava de volta, com um grandalhão nos braços, aparentemente já morto.
– Damas! – brincou, e me estendeu o braço do homem. Eu não vi a menor graça, mas era verdade que eu ainda sentia sede. Mordi o braço e suguei o sangue, até a última gota.
Jonas sumiu por uns instantes e me abraçou quando voltou. Queria sentir raiva dele por ter feito aquilo comigo, mas não consegui. Não era culpa dele se eu tinha me apaixonado e escolhido este caminho. Agora, eu tinha que me aceitar.
Então, fomos para casa.
Não disse uma palavra por todo o trajeto. Eu tinha tanta coisa na cabeça que não sabia em que pensar primeiro. As mortes, a sensação do sangue na minha garganta, meus novos sentidos, meus ciúmes.
Ciúmes!
Eu nunca fui ciumenta. Nem com Lucas, nem antes dele, nem depois, com Jonas. E agora, eu estava enciumada, louca de ciúmes por causa de uma garota que Jonas matara. Era ilógico!
Mas eu estava. Morrendo de ciúmes, porque ele nunca tinha me olhado da forma como olhara para ela – todo cuidado e gentileza. Para mim era sempre ironia e no máximo um olhar e carinho obscurecido. É claro que eu estava com ciúmes! Ele tinha olhado com mais encanto e desejo pra garota que ia matar do que pra garota que morrera por ele.
E é claro que estava me sentindo uma perfeita idiota. E agindo como uma perfeita idiota. A menina estava morta, que diferença fazia?
Não era tão simples na minha cabeça. Chegamos à casa de Jonas e voltamos ao quarto, e eu continuei quieta, pensando, remoendo. Cada vez que eu olhava para Jonas, me lembrava de seus olhos encarando outra, suas mãos tocando outra pele; era demais para a minha cabeça.
Quando dei por mim, Jonas me olhava, curioso e divertido como sempre.
– O que foi, Beni? – ele perguntou. Eu balancei a cabeça, tentando disfarçar.
– Eu só… – pensei rápido. Não queria admitir o ciúme e não queria mentir, então o segredo seria contar uma outra verdade – Eu estou me sentindo uma assassina.
– É o ciclo da vida, Beni! Faz parte de você, agora! – exclamou, e eu suspirei. Jonas me abraçou.
– Eu sei. – e afundei a cara no seu peito, inalando seu maravilhoso cheiro para me sentir melhor – Mas eu preferia que não fosse assim. Que eu não fosse um…
– Monstro?
– É.
– Isso me ofende, sabe? Eu estou acostumado com esse negócio de ser monstro. Não é tão ruim.
– “Não é tão ruim”…
Fizemos um momento de silêncio. Agora, além do ciúmes, a culpa pelos assassinatos rondava minha mente.
– Você está… arrependida? – Jonas murmurou. Eu franzi o cenho e o soltei.
– Jonas! – exclamei, mas minha falsa indignação não convencia nem a mim – Não!
– Eu sei que está! – insistiu.
A resposta morreu na ponta da língua, porque eu não sabia como responder àquilo de fato. Eu não estava cem por cento feliz, é claro; eu tinha aberto mão, literalmente, da minha própria vida para me tornar um monstro que matava mocinhas inocentes na saída de danceterias. Então me lembrei do porquê tinha chegado até ali.
– Você é a única coisa que eu quero, Jonas! Eu fiz o que tinha que fazer.
– Mesmo?
– Claro! E eu acredito quando você diz que eu vou me acostumar. É tudo muito novo ainda.
– Exato! – ele sorriu e me abraçou de novo – E eu vou estar do seu lado, lembra?
Era como se uma pedra estivesse entalada na minha garganta, enquanto minha mente repassava as imagens que eu não queria ver.
– É. – respondi, com a voz entrecortada. Eu não tinha tanta certeza.
Senti Jonas ficar mais rígido sob os meus braços e o soltei. Ele estava me observando, lendo as minhas expressões.
– Tem mais alguma coisa. – não era uma pergunta.
– Não. – menti, dando-lhe as costas.
– Beni, por favor. – sua mão tocou meu ombro – Diga.
– Só foi…estranho… – escolhi com cuidado as palavras, tentando soar indiferente – Te ver atacando hoje.
Jonas me girou até ficarmos um de frente para o outro. Ele estava sorrindo, deliciado e irritante.
– Você está com ciúmes! – ele disse, e abafou uma risada.
– Não seja ridículo! – tirei suas mãos de mim, mas a minha irritação só fez mostrar que ele estava certo.
– Claro que está! – e deu uma longa risada – Eu só não entendo por que você teve ciúmes do meu jantar!
– Jonas, você me irrita!
Ele pegou minha mão e me puxou, me ergueu e me grudou contra o seu corpo, girou e me jogou contra a parede do quarto, tão forte que eu vi pequenas partículas brancas se desprendendo dela, o teto balançando. Foi meio dolorido, mas eu gostei.
Não que eu fosse admitir, é claro.
– Me larga! – sibilei. Mas não desejei de fato.
– Admita! – sussurrou no meu ouvido, me deixando louca. Era o tipo de efeito que nem a falta de hormônios poderia bloquear.
– Eu odiei te ver tão perto de outra garota! – sua mão desceu e ergueu parte da minha blusa, tocando minha pele, apertando-a com força – Olhando, tocando outra que não era eu!
– Mesmo que não fosse tão perto quanto eu estou de você agora? – seus lábios roçaram meu pescoço, morderam o lóbulo da minha orelha. Era injusto.
Jonas me beijou, e a próxima coisa que eu notei foi que estávamos na cama, ele sobre mim.
– Às vezes eu ainda te odeio! – murmurei, enquanto ele arrancava a minha camiseta.
– Tomara que isso não mude nunca!
Nós dois rimos e eu desisti de pensar.
Jonas tirou minhas roupas com muito mais cuidado que eu tive quando comecei a tirar as dele. Minha urgência pareceu surpreendê-lo e diverti-lo, enquanto sua destreza e calma só faziam aumentar a minha ansiedade. Isso e a visão do seu corpo maravilhoso, enquanto ele acompanhava os contornos do meu.
Inocência minha pensar que os vampiros não sentiam nada. Eu estava sentindo e estava adorando, curtindo muito mais o momento do que jamais faria se ainda fosse humana. Verdadeira e inteiramente, agora éramos um do outro.
E ninguém jamais poderia tirar isso de mim.

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