Dadas as insistências pra que esse capítulo fosse logo liberado… atendi! No fundo eu sempre me rendo a vocês, né? 😛
Pra quem já leu As Bruxas de Oxford, deliciem-se 😀 Se você ainda não leu, NÃO LEIA este capítulo. Contém uma dose espetacular de SPOILERS.
Não se esqueçam, claro, de comentar pra me deixar feliz! E lembrando que quem tiver perguntas pra me fazer sobre este novo livro, pode mandá-las através deste formulário 🙂
Divirtam-se!
Eu corria acelerada, o mais rápido que meu longo vestido de festa me permitia. Lágrimas escorriam pelo meu rosto e borravam a minha visão. Eu só conseguia enxergar, no fim de uma ruela deserta, uma enorme cortina de fumaça seguida do que parecia ser um paredão de fogo. Eu não o via, mas ouvia seus gritos: Sam estava lá. Meu Sam. Eu quase conseguia sentir o fogo consumindo sua pele, a dor inexplicável atingindo seus membros.
Tentei me forçar a correr mais rápido, mas tropecei por causa do salto idiota que eu tinha inventado de usar. Salto, vestido longo, penteado, maquiagen; se eu soubesse que teria que lutar contra bruxas naquela noite, teria vestido algo mais confortável. Mas agora não dava tempo. Arranquei as sandálias o mais rápido que pude e tentei abrir um rasgo no vestido que me permitisse correr mais rápido. Então o ouvi gritar, chamar meu nome. Tornei a correr como se a minha vida dependesse disso.
Eu estava alcançando. Estava cada vez mais perto. Eu já conseguia enxergar Sam, num ponto mais alto, amarrado numa tora de madeira, quase sendo alcançado pelo fogo. Meus joelhos estremeceram como se fossem feitos de gelatina, mas eu não podia parar. Tentei acelerar, mas uma barreira invisível me deteve. Eu gritei em desespero, mas algo pareceu travar minha garganta. E então eu as avistei.
Kathi Jonas e Megan Goyle. Minhas irmãs de alma, também conhecidas como Jane e Cecily Von Evans, aquelas malditas. Elas riam abertamente para mim, e Megan lançava rápidos olhares de desdém para seu irmão Sam, preso na fogueira. Como ela podia fazer isso com ele? Mais importante, por que ele? Se queriam a mim, por que não vieram me pegar? Sam não precisava estar envolvido.
Continuei me debatendo contra a parede invisível, tentando contorná-la. A cada choque, eu era lançada alguns centímetros para trás. Sejá lá qual feitiço fosse aquele, era dos bons. Eu berrava a plenos pulmões, mas nada saía. Eu me recusava a sair dali sem lutar. Elas não iam levar o meu Sam!
Finalmente, então, consegui gritar. Minha voz saiu em palavras incompreensíveis, gritos assustadores, porém eficazes. De imediato, algo aconteceu: eu despenquei no chão, exausta, mas meus olhos estavam bem abertos. Vi a parede invisível se dissolver numa camada de poeira, e vi Kathi e Megan morrerem bem diante de mim, suas vidas sendo sugadas junto com toda a magia em meio a um redemoinho de luz branca que cortava a noite. Eu as ouvi gritar e implorar e sofrer, mas eu não consegui sentir pena.
Breu. O fogo se apagou com outra onda de luz, e Toy, saído do nada, escalou a fogueira e usou suas unhas para libertar Sam, que mesmo estando muito machucado, veio trôpego até mim. Imaginei que ele fosse me agradecer, ver se eu estava bem, me perguntar o que tinha acontecido. Ao invés disso, ele se abaixou e me olhou como se eu fosse um monstro.
Completamente merecido, imagino. Eu tinha mesmo matado a irmã dele. Mas doía, de qualquer maneira.
– Por que você fez isso, Malena? – ele me perguntou, e essa pergunta se repetia inúmeras vezes, como se houvesse um eco sem fim. Todo o cenário se dissolvia e se transformava num nada negro, onde estávamos eu e ele apenas, o som batendo nas paredes invisíveis, voltando pra mim.
Eu tentava responder. Gritava. E não saía som da minha boca.
E então, vindas do nada, Megan e Kathi reapareceram, caminhando lentamente. Os rostos sem expressão, a pele pálida e de aparência gélida, os vestidos rasgados e cheios de sangue, inúmeras marcas ao longo do corpo como se tivessem sido chicoteadas. Tentei agarrar a mão de Sam, para ao mesmo tempo protegê-lo e pedir ajuda, mas, para a minha surpresa, ele soltou minha mão com uma expressão quase de nojo. Se levantou e se afastou de mim, dando espaço para que Megan e Kathi me alcançassem.
Mais rápido agora, elas vêm até mim,
Vieram me buscar, vieram me buscar. Elas vieram me buscar pra me levar pro inferno.
Como alguém pode ser condenada por tentar salvar uma vida?
Como eu poderia não ser condenada por tirar duas vidas pra que isso acontecesse?
Talvez eu mereça ir pro inferno.
Grito quando suas mãos frias e podres me alcançam, e então acordo, só pra descobrir que é madrugada de novo.
Sonhar com a mesma coisa durante aproximados 60 dias não é brincadeira.
Suspirei de alívio e pus a mão sobre a testa suada. Ouvi o som do telefone, mas ele não estava em nenhum lugar que eu conseguisse ver. O toque estridente do meu celular tinha sido o meu bote de salvação todas as manhãs nos últimos dois meses. Não fosse por ele, eu descobriria exatamente que tipo de vingança Kathi e Megan tinham preparado para mim. Mesmo que só nos meus sonhos.
Então Toy saltou sobre a minha cama, carregando meu celular na boca, fazendo com que ele parecesse extremamente canino. Meu gato preto falante deixou-o sobre a minha barriga, completamente babado, e deu um miado engraçado. Preferi não comentar o quanto ele se parecia com um cachorro naquele exato momento. Poderia deixá-lo ofendido.
– Ele me acordou também. – ele disse, sem animação – É o Sam.
– Você lê? – perguntei com um bocejo, depois de limpar o visor e ver que ele estava certo.
– Não, eu apenas tive tempo pra memorizar que a primeira ligação do dia é sempre a dele.
Era verdade. Desde que eu e Sam tínhamos começado a namorar, ele me ligava todos os dias de manhã. Mesmo quando era sábado, como hoje. Toy reclamava o tempo todo, dizendo que aquelas ligações completamente desnecessárias serviam apenas para acordá-lo de uma boa soneca. Eu achava o máximo.
– Oi, amor. – atendi, tentando não parecer completamente cansada. Parecia que um trator tinha passado sobre mim durante a noite.
– Oi, Lena! – Sam exclamou, todo animado, me chamando pelo apelido que tinha adotado pra mim – Bom dia!
– Bom dia, Sam. – dei um sorriso largo só de escutar sua voz – Me acordou, sabia?
– Eu ligo especialmente pra ter esse prazer!
– Obrigada por isso.
– Minha mãe quer saber se você virá aqui hoje. Pra almoçar.
Fiquei com a boca aberta por uns instantes, sem saber o que dizer. Passei a mão nos meus longos e escorridos cabelos quase brancos, ainda tentando encontrar uma resposta que Sam obviamente sabia que eu viria a dar. A Sra. Goyle queria me conhecer desde que Sam havia falado sobre mim pela primeira vez, mas eu ainda não tinha coragem suficiente para encará-la.
– Sam, você sabe que eu não posso ir aí. – eu disse, com cautela, enfatizando bem o fato de que eu simplesmente não podia.
– Para com isso, Malena. – Sam disse, parecendo chateado. Há dias ele tentava me convencer a ir até lá. E há dias eu estava tentando enrolá-lo com todo tipo de desculpa possível.
– Você não sabe como é, ok? – bufei e engoli o choro que estava vindo – Como você acha que eu vou poder olhar pra sua mãe depois de… – ter matado sua irmã – Tudo?
– Ela não sabe de nada.
– Mas eu sei, e isso é suficiente pra que seja horrível.
– O que eu devo dizer a ela?
– Qualquer coisa.
Sam ficou mudo do outro lado. Toy lambeu a pata e eu vi que seu olhar me reprovava. Bufei.
– Desculpe. – murmurei – Eu só preciso de tempo.
– Eu entendo, Lena. – ouvi-o suspirando – O tempo da minha mãe já acabou. Ela está bem agora. Você sabe que quando estiver pronta, vai ficar tudo bem.
– Sei, claro.
“Como você consegue ser tão legal comigo depois disso?”, eu tinha vontade de perguntar. “Eu matei a sua irmã”. A calma de Sam pra lidar com um assunto que ainda me corroía e sua capacidade de me namorar mesmo sabendo que eu tinha destruído parte de sua família eram coisas que eu simplesmente não compreendia. Como alguém podia ser tão bom a ponto de perdoar e ainda amar uma pessoa que tinha feito algo tão ruim quanto o que eu tinha feito?
Mas eu não falei nada. Trocamos mais algumas palavras e eu desliguei, com o coração agoniado. Olhei em volta, pousando meu olhar no canto escuro do sótão onde ficava o baú da família von Evans. Eu não tinha coragem de mexer em nada, como se qualquer mudança sequer na cãoição daqueles ítens abrisse feridas do tamanho de caminhões. Por isso, os livros e diários de bruxa estavam jogados exatamente como da última vez em que haviam sido usados. O espelho de moldura dourada, antigo, quebrado e manchado, continuava apoiado na parede ao lado da minha cama, esperando pra ser usado. Toy era a única herança de Dorothi que não me dava vontade de vomitar.
Principalmente, meu lado bruxa continuava intocado. Adormecido. Eu nem sabia se ele ainda estava lá depois das coisas que haviam acontecido e do feitiço que eu havia proferido. Eu me sacrifiquei pra matar duas bruxas e salvar o garoto dos meus sonhos, e não estava especialmente preocupada nem arrependida quanto a isso. Tinha sido a melhor e mais sábia escolha da minha vida. Ainda assim, não ter mais minha magia era completamente incômodo.
Sem mais a facilidade de fechar portas que esqueceu abertas só de olhar pra elas. Sem puxar as coisas pra si, sem fazer o que quiser com tudo à sua volta. Porém, sem explodir nada acidentalmente e tudo isso. E mais importante, sem Dorothi dividindo minha vida e meus pensamentos comigo. Tentava me lembrar do enorme inconveniente que era ter minha antepassada bruxa vivendo na minha cabeça comigo, me aporrinhando toda vez que ela começava a reclamar da minha condição de humana comum. Era algo de que eu realmente não sentia falta.
Me levantei, troquei de roupa e pus um pouco de comida para Toy. Coloquei o celular sobre a cômoda, calcei os chinelos e desci do sótão. A luz do dia que iluminava o corredor machucou meus olhos, sensíveis demais, e eu os cobri com a palma da mão enquanto descia.
Na cozinha, minha mãe, Milla, meu pai, Dave, e meus irmãos Colin, Dylan e Adam já estavam tomando café. Dei um bom dia desanimado e peguei o leite na geladeira.
Apesar de o inverno já estar no final, ainda fazia frio em Oxford. Naquele sábado, fui com Toy até a loja de animais, onde ele escolheu sua ração e paquerou uma gata de outra mulher. Ri disso enquanto íamos pra casa, e Toy me disse que, quando se é um gato falante com séculos de idade, se aprende a apreciar as coisas boas da vida.
Não discuti depois dessa.
– Não vai ver Sam hoje? – ele me perguntou, quando já estávamos de volta no sótão. Eu peguei o livro de química e meu caderno.
– Prova na segunda-feira! – justifiquei, e Toy fez algo que parecia um ronronar irritado.
– Você está fugindo dele, Malena, admita!
– Estou. – fiz beicinho e abandonei o livro – Você me entende, não é? Por favor, de todos no mundo, me entenda!
– Eu não entendo. – Toy subiu na minha cama e deitou sobre o meu travesseiro, olhando de um jeito curioso pro meu abajur de panda – Você age como se qualquer um soubesse que matou a menina Megan só de olhar pra você. O que não é verdade. Você disfarça muito bem.
– Cale essa boca! – exclamei, com medo de que alguém o tivesse escutado – Eu deveria fazer um feitiço pra cortar fora essa sua língua comprida!
– Você não tem mais magia.
– Obrigada por me lembrar disso, Toy! Muito esclarecedor!
Abri o livro e comecei a ler. Fiz umas anotações de fórmulas aqui e ali, tentando me concentrar. Era difícil. A menção ao ocorrido me dava arrepios na espinha, revirava meu estômago, e me fazia lembrar dos meus pesadelos. Eu odiava a sensação de impotência que aquilo me trazia.
– Se serve de consolo, você matou duas bruxas que queriam escravizar a cidade e matar seu namorado. – Toy disse, de repente. Automaticamente, mexi a mão, como se fosse segurar seu focinho, mas nada aconteceu. Teria funcionado perfeitamente bem se eu fosse bruxa. Não era mais o caso.
– Esqueça isso. – pedi, com a voz cansada. Mas nem eu conseguia esquecer.
Vinte minutos inteiros se passaram, e eu ainda estava na primeira página. Era óbvio que eu não ia conseguir estudar daquele jeito.
– Eu tenho uma teoria. – Toy afirmou então, vindo até mim. Pulou sobre o meu livro e ali se sentou, me encarando com seus grandes olhos amarelos.
– Só fale se for uma teoria química. – resmunguei, me sentindo uma completa fracassada.
– Acho que você não perdeu seus poderes. – insistiu o gato, e eu fiz uma careta.
– Toy, preste bastante atenção porque só vou fazer isso uma vez, ok?
Ergui a mão e me concentrei, buscando a magia que não estava ali e tentei mover alguma coisa. Um livro, um fio de cabelo, qualquer coisa. Nada aconteceu.
– Viu só? – tirei-o de cima do livro e espanei os pêlos – Eu não sou mais uma bruxa, Toy. Felizmente.
– Não finja que está feliz com isso. É deprimente.
– Me deixe estudar!
Toy miou e deitou-se aos meus pés. Ficou calado, e eu tentei estudar pela hora seguinte, avançando as páginas sem me lembrar do que havia lido nas linhas anteriores. Era simplesmente impossível me manter sã com tudo me fazendo lembrar dos meus piores pesadelos a cada momento.
O pior de tudo era admitir que Toy tinha razão. Era mesmo deprimente o modo como eu tentava fingir que adorava voltar a ser só mais um ser humano limitado. Eu estava me enganando, ou tentando me enganar. Por mais de 15 anos, eu tinha me acostumado a ser a menina estranha. Durante meses, eu tinha aceitado e aprendido a lidar com o fato de eu ser uma bruxa. E agora, eu só me sentia comum.
Comum porque todo mundo em Oxford já tinha se acostumado comigo, e ninguém mais me olhava de maneira diferente só por ser albina. Comum porque eu era mais uma garota na minúscula OSD me esforçando pras provas finais, me desdobrando entre as dúvidas de faculdade e meu namorado perfeito.
Comum porque eu não era mais uma bruxa, não tinha mais que salvar uma cidade inteira – por menor que ela fosse – não destruía coisas sem intenção quando estava irritada demais, não movia nada com a mente, não podia fazer feitiços, não tinha toda aquela emoção de viver sempre no risco e não tinha mais nada de excitante na minha vida.
Obviamente, eu sabia que estava sendo ridícula e egoísta. Quero dizer, qualquer um adoraria um pouco de paz após todas as coisas insanas que haviam acontecido, certo? Qual era o sentido de querer mais problemas depois de ter assassinado duas pessoas por algo que só tinha te feito mal? Eu devia estar completamente feliz agora!
Mas não podia, porque eu sentia falta de tudo, mesmo da parte ruim. Até de discutir comigo mesma em frente a um espelho quebrado, e de saber que eu tinha um lado ruim escondido em mim. Eu sentia falta porque era o que me fazia sentir especial, diferente de um jeito só meu.
Malena, Malena, em que você estava pensando?
Eram mais ou menos nove da noite, e eu não fazia a menor idéia do que eu estava fazendo com meu material de química, quando o celular tocou e me deu um susto. O achei debaixo do travesseiro e atendi, já sabendo quem era.
– Oi, Sam. – disse, de pronto.
Mas não era Sam do outro lado da linha.
– Malena, eu acho que deveríamos nos ver. – disse minha tia Frida, do outro lado da linha.
– Eu estou ótima, tia, e você? – soltei, petulante. Não era a primeira vez que minha tia me ligava num sábado à noite.
Na verdade, ela vinha me ligando todo sábado à noite nos últimos meses, sempre pra dizer que queria me ver. Eu sempre fugia. Não nos víamos desde o batizado de Linda, pouco depois do Ano Novo. Na ocasião, eu fiz de tudo pra sair da festinha o mais rapidamente possível, fazendo de tudo para não ser pega desprevenida.
– Malena, eu estou falando sério. – suspirou – Eu estou ótima. Mas estou preocupada com você.
– Eu agradeço, mas não é necessário. – afirmei, em tom de quem dá por encerrado o assunto.
– Dorothi, será que pode me escutar?
Aquilo era novo. Em todas as ligações, minha tia nunca tinha me chamado pelo meu nome de bruxa. Ela sempre me tratava como sobrinha, não como irmã. Ser chamada pelo meu outro nome me fez estremecer.
– Zethi, seja razoável. – pedi, com o tom que costumava usar quando era Dorothi falando, e não eu. O tipo de conversa mudava, o vocabulário, e até disso eu sentia falta. Quando era Dorothi, a Dorothi de verdade, quem estava falando, soava confiante em natural. Quando eu tentava imitar, parecia uma menininha de dez anos mostrando o que aprendeu na escola.
– Eu estou preocupada com você! – ela insistiu – Preocupada porque você está fechada pra mim depois das coisas que aconteceram. Você acha que eu não vejo, que eu não ouço o quanto está diferente?
– Quem está fofocando pelas minhas costas?
– Venha até aqui e falamos disso.
Claro. Como se ela fosse barganhar aquilo comigo quando tudo o que eu queria era não lembrar.
– Boa noite. – declarei.
E desliguei. O telefone, dessa vez, pra ter certeza de que não voltaria a ser incomodada.
Mas evidentemente fui incomodada. Por mim mesma. Porque desligar o telefone não impediu que eu dormisse e sonhasse o mesmo pesadelo de novo.
Eu não gostava daquela rotina.
Fiz meu caminho de sempre até a ODS na segunda-feira, acompanhada como sempre por Eric e Freddy, que iam na frente, chutando os últimos resquícios de neve e falando de pessoas que eu não conhecia muito bem. Eu estava exausta, tinha uma prova e nenhuma perspectiva de me dar bem no dia.
A vida estava chata, era verdade. Mas talvez fosse melhor assim. Eu podia dar atenção à minha família, aos meus amigos. Podia me preocupar com coisas maiores no tempo certo, podia viver sem o risco iminente de ser morta ou ameaçada por quem fosse. Eu estava bem daquele jeito, não estava?
A que eu estava querendo enganar?
Cheguei na escola e quase fui atropelada no estacionamento ao passar distraída demais. O motorista – um cara do último ano, pelo que eu podia me lembrar – buzinou e me mandou sair da frente. Meu coração acelerou, e eu sabia que aquela seria possivelmente a maior emoção que eu teria no dia. E nos próximos.
Atravessei o estacionamento lotado de pedrinhas da ODS em direção aos prédios pequenos e suficientes pra população tão limitada da nossa escola. Ali na frente, exatamente como no primeiro dia de aula em que eu havia levado um estojo nas costas sem querer, estavam Haley e Hellen Nelson, as gêmeas mais parecidas e cômicas do mundo; Yara de los Angeles, minha melhor amiga e fiel religiosa; Ned Lee, o chinês que eu mais gostava no mundo; e o meu Sam.
Sam, como em todas as manhãs, foi o primeiro a me receber, com o seu abraço apertado e o beijo que ainda me fazia ter vontade de pular de alegria. Eu ainda me sentia como se o estivesse vendo pela primeira vez. O frio na barriga não tinha desaparecido, nem aquela sensação de que o mundo explodiria em cores de tanta felicidade que eu sentia por estar com ele.
Dei um oi rápido pra todo mundo, observando Yara e Ned conversarem. Estava perdida em pensamentos nostálgicos quando ela chegou.
Liu Schieng Chuan. A pessoa com quem eu tinha tido que me acostumar nas últimas duas semanas. Uma chinesa um pouco menor do que eu, que ia pra escola com penteados estranhos e botas de combate. Suas roupas me lembravam de Kathi – mas eu evitava fazer essa comparação pra não começar a chorar onde estivesse. Preferia pensar que Liu era uma peça única.
No entanto, havia alguma coisa sobre Liu que me incomodava. Eu não sabia dizer exatamente o que era. Ela não era nova na cidade – eu nunca tinha prestado atenção especial a ela por não termos nenhuma aula juntas, mas, por ela ser do mesmo ano que eu, já sabia que ela existia. Mas ela tinha se aproximado de maneira tão repentina de Ned, e olhava a todos nós de maneira tão estranha…
Bufei. Devia ser só coisa da minha cabeça. Eu estava desconfiada dela pura e simplesmente porque a sua intromissão na vida dos meus amigos estava fazendo a Yara sofrer, e eu a odiava por isso. Ned não percebia, mas eu – e todo mundo – via o sorriso maldoso que ela lançava pra minha amiga quando os dois estavam juntos, como se ela tivesse algum tipo de qualidade superior que a tornava muito melhor que Yara, e portanto merecedora de Ned. Uma necessidade de fazê-la sentir inveja pelo que lhe tinha sido roubado.
Quando a vi chegar perto de Ned e lhe dar um grande beijo na boca, só pude imaginar o que Yara estava sentindo. Ela e Ned não haviam dado certo: um mês depois de terem começado a sair juntos, terminaram. A amizade ia bem, mas eu sabia, mesmo que ela não me dissesse, que ainda gostava dele. E ele agora estava com Liu.
Discretamente, Yara tirou seu time de campo e veio até mim e Sam. Usava a mesma saia que ia até os pés, e os cabelos negros presos numa trança que caia infinitamente pelas costas. Completamente diferente de Liu, com seu cabelo escorrido preto rabiscado de azul e vermelho em mais de um ponto, suas roupas coloridas desengonçadas e seu jeito meio punk de ser.
Sem dúvidas sobre a minha preferência!
– Tudo bem? – perguntei a Yara, indicando Ned com a cabeça.
– Eu estou ótima. – ela me respondeu, mas eu sabia que não era verdade. Eu só não ia dizer isso a ela.
– Vai me ajudar a estudar hoje, então? – indaguei, só pra mudar de assunto. Yara fez uma careta.
– Tem mesmo que ser na sua casa? – quis saber, e eu rolei os olhos.
Ela ainda tinha medo da Casa Azul. Todo mundo tinha medo, ainda que estivesse habitada e perfeitamente segura (pelo menos até onde as pessoas tinham conhecimento) desde que nós chegamos. Divaguei por um instante pras lembranças daquele passado tão distante, me perdendo nas imagens da minha outra vida. Retomei o foco antes que me perdesse por completo.
– Não faz o menor sentido você ter medo, ok? – afirmei, sorrindo. Yara tentou sorrir também, mas não deu muito certo – Eu te protejo!
Olhei por um mísero segundo pra Sam. Ele sorria com a compreensão que só ele poderia me dedicar.
– Tudo bem. – Yara respondeu, sorrindo sinceramente – Você tem razão. Eu estou sendo boba.
– Claro que está!
Então o sinal tocou, anunciando o início do martírio. Me despedi de Sam e segui ao lado de Yara para o meu prédio.
A OSD já era quase que uma segunda casa pra mim. Eu já conhecia cada prédio e cada funcionário, já reconhecia rostos e lembrava nomes, cumprimentava pessoas aleatoriamente no caminho pra sala de aula. O difícil era passar pelos corredores, onde as fotos de Megan Goyle e Kathi Jonas me lembravam da assassina que eu era. Talvez fosse por causa daqueles cartazes de desaparecidas, do eterno sofrimento das mães, da persistência em encontrar suas filhas que eu sabia que nunca voltariam pra casa, que eu não conseguia esquecer. Todos os dias, os olhos nas fotos me encaravam com ares de acusação, e a minha culpa nunca diminuía. Como sempre, fingi ignorar, e entrei na sala de aula.
Me sentei no meu lugar de sempre, atrás de Yara e ao lado de Ned, agradecendo a Deus – ou ao Senhor das Almas, como ensinava meu lado bruxo – por não ter que agüentar a nova namorada dele por pelo menos duas aulas. Meu estado de felicidade não durou muito mais tempo, quando me lembrei que era aula de matemática e estremeci. Eu já teria repetido naquela matéria se Ned não me ajudasse tanto quanto podia.
Aparentemente, aquela ajuda não era o suficiente. Porque, quando o Prof. Timmy me entregou a minha prova corrigida, o “D” estava em vermelho, circulado e gritante.
– Ótimo. – murmurei. Naquela prova, eu tinha passado metade do tempo pensando no meu pesadelo de sempre, e a outra metade tentando colar de Ned. Não tinha tido muito sucesso.
Eu não fazia idéia do que faria pra recuperar aquela nota. Aquelas, eu deveria dizer. Aquele era o meu segundo D, seguido de um C- e um C+. Isso sem contar que a primeira prova do semestre tinha sido um fiasco: eu tirei um E. Definitivamente, eu era a aluna mais fracassada daquela sala.
Pra não dizer a mais miserável.
As aulas se arrastaram até a hora do almoço. Minha prova no segundo tempo foi um pouco melhor do que eu esperava que fosse. Foi um alívio imensurável deixar a sala de aula e ir até o refeitório, onde Sam já estava me esperando, com um sorriso no rosto e os braços abertos pra me receber.
Eu não agüentaria um só segundo se não fosse por ele, disso eu tinha certeza.
Me sentei entre ele e Halley. Ela, pra variar, cochichava com sua irmã gêmea, Hellen. Ao lado de Hellen, Patrick copiava a lição de casa que Yara tinha feito, e ao lado de Yara estava Ned, seguido de Liu. A decisão de deixá-la sentar na nossa mesa tinha muito mais a ver com a nossa amizade por ele do que com aceitarmos ela. Liu não fazia o menor esforço em ser simpática e não tinha o menor interesse em ser nossa amiga. Pra mim, ela só não tinha levado Ned pra se sentar na sua antiga mesa (junto com outros punks da escola) porque ali era o melhor lugar para forçar Yara a observar a relação dos dois.
Eu estava pensando num modo de tirar minha melhor amiga da posição de dor em que ela se encontrava quando Halley finalmente pareceu notar que a mesa estava cheia e resolveu expandir sua conversa. Ela parou de falar, os lábios unidos numa linha fina, então sorriu com excitação.
Qual seria a fofoca da vez?
– Nossa mãe… – ok, essa era nova – Contou uma coisa IN-CRÍ-VEL pra gente!
As gêmeas tinham pego essa mania de separar as palavras em sílabas quando queriam enfatizar alguma coisa, nos últimos tempos. Me irritava mais do que a mania de completarem as frases uma da outra só pra me deixar confusa.
– Parece que tem um grupo de ciganos vindo pra cá! – Hellen exclamou, como se fosse a notícia do ano – Ciganos! Dá pra acreditar?
– Minha mãe disse que teve um grupo pequeno deles há uns vinte anos atrás. – Liu falou, do nada. Era novidade que ela opinasse nas fofocas que as gêmeas Nelson sempre contavam durante a hora do almoço – Com seus panos coloridos e música e dança. Ela achava bonito.
– Meu pai se lembra deles também. – Yara falou, apressadamente, e eu fiquei ainda mais surpresa em perceber que ela só estava falando porque Liu tinha dito algo primeiro – Disse que eles eram malignos, que assaltavam as lojas, assustavam as crianças, como demônios. Meu pai disse que não duvidava nada que fossem bruxos ou algo do tipo, aparecendo e sumindo sempre do nada.
Meu cérebro ficou alerta num segundo quando ela disse a palavra “bruxos”. Sam apertou minha mão, entendendo meu pequeno pânico, e então eu relaxei. Quero dizer, qual era a possibilidade de haverem mais bruxos do que eu já conhecia? Éramos uma espécie bem rara, pelo que as lembranças de Dorothi me diziam.
Seguiu-se uma enorme discussão sobre a tal índole cigana, onde Liu e Yara, como era de se esperar, lideravam os dois lados extremos. Eu preferi simplesmente não me meter. Eram apenas superstições de um velho religioso. Yara era bem convencida de tudo que seu pai pregava e ensinava, mas eu sabia que aquilo era pura besteira. Eram apenas ciganos. Iam chegar, acampar por um tempo, e ir embora. Nada com que eu precisasse realmente me preocupar.
hum… sei.
Eu também não entendo porque a Malena se sente tão mal por causa da Megan –' e não curti o apelido que o Sam deu pra ela… :/
mas fora isso, está tudo muito bom *–* estou ansiosa pela sequência, e já deu pra ver que até a narrativa desse livro é melhor! E queria ver o poder da Malena aumentar em O Coração da Magia. Não pode ficar só nesse negócio de fechar portas e mover objetos, né?
Saaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaam SEU DIIIVO! <3
Ai que saudades da Malena, do Sam, das gêmeas, da Yara, do Ned! *o* (Não gostei dessa Liu. ¬___¬) Pelo que vejo, a coisa vai esquentar nessa sequencia! Já deu até pra ver que vai ter muita encrenca pra Malena! =O
Ah, eu gostei do apelido que o Sam deu pra ela. É fofo! >< Só não gostei dessa relutância dela, por causa da morte da irmã dele. :/ Espero que isso passe! (YN)
Parabéns Larissa! A narrativa está ótima, e esse capítulo me deixou curiosa! *O*
HUuuuuuuuuuuuuum… curiosa pela continuação! *-*
acabei de ler ontem!!! e já to ansiosa pela sequencia!!