Já leu a primeira parte do conto? Então siga em frente!
Ainda não? Então corre e leia antes de continuar 😉
(Um mês Depois)
– E ai? Vai sair dessa fossa ou não?
Nem teria prestado atenção no que a Ingrid, minha melhor amiga trintona, solteira e completamente tresloucada, tinha dito, não fosse o fato de que ela estava me forçando a olhar pra ela e falando tão alto que acho que a escola inteira poderia ouvir.
Estávamos no período de trabalho, e eu estava corrigindo umas provas. Eu era professora de história num colégio particular, e a Ingrid ensinava química. Tínhamos nos conhecido no trabalho e ficado amigas desde então. Ela vinha tentando me dar espaço pra sofrer, mas, pelo visto, sua paciência tinha se esgotado.
– Não to na fossa. – falei.
É claro que, quando se afirma isso, o que realmente se quer dizer é “estou enterrada nessa até o pescoço”. Mas não custa tentar. Às vezes a gente tem essa sensação de que, se falar em voz alta que tal coisa é de tal jeito, isso magicamente vai virar realidade.
Mas a Ingrid não acreditou nisso nem por um segundo. Ela revirou seus olhos esverdeados e se sentou na minha frente, aparentando estar puta da vida.
– Babi, já faz um mês. Tipo, quanto tempo mais você pretende ficar de luto?
– Não to de luto. Eu to legal.
– Não ta, não. Eu to vendo, todo mundo ta vendo. – ela suspirou e pôs uma mão sobre a minha – Amiga, não dá mais pra ficar assim. Ele não merece que você sofra tanto.
– Nós ficamos juntos 10 anos, Ingrid. É uma vida. Como você espera que eu fique?
Ela bufou.
– Novidade pra você: ele não está nem aí!
Ouch, essa doeu!
Como eu não disse nada, ela continuou em detonando com as suas palavras meigas.
– Eu sei que foi um tempão com o cara e não sei o quê, mas, Babi, OI! A vida continua, flor! Não sei se você reparou, mas continuou pra ele, e isso quer dizer que não tem mais volta!
– Eu…
– Pára de se privar da sua vida. Pára de ficar ai sem fazer nada. REAGE, pelo amor de Deus!
– Eu…
– Olha só… – ela fez sinal que eu parasse, após me interromper pela segunda vez, e eu me calei de novo – Quando você decidir que quer seguir em frente e que eu posso te ajudar, me avisa, ok? Não vou mais te encher o saco! Mas não me procure enquanto estiver nessa fossa!
E dito isso, ela deixou a sala dos professores.
Fiquei olhando pra direção por onde ela tinha saído, sem conseguir acreditar. Tipo, eu estava na pior, meu único namorado tinha me deixado e tudo o que a minha melhor amiga conseguia fazer por mim era me deixar pior.
Sério, como as coisas poderiam ser mais dramáticas do que isso?
Nunca, jamais mesmo, se pergunte como as coisas podem ficar piores. A lei do universo dita que, quando você acha que nada pode piorar, tudo definitivamente há de virar um caos.
Minha melhor amiga continuava sem falar comigo, e eu não sabia como reverter a situação. Por mais que eu tentasse, toda vez que eu ia falar com ela, a Ingrid me perguntava:
– Já ta pronta pra partir pra outra?
– Não, mas…
– PÉÉ PÉÉ PÉÉ, resposta errada. – ela dizia, e me virava as costas.
Isso era o máximo que eu conseguia dela.
E então, veio o final do ano. Dezembro, fechamento de notas, muito trabalho e muitas coisas pra corrigir. Eu estava atolada de provas com notas atrasadas e notas pra passar, e então, a porta da sala dos professores abre, e entram em cortejo a coordenadora pedagógica, a diretora e o dono do colégio.
Eu só tinha visto um dono do colégio uma vez nos dois anos em que eu trabalhava ali. Naquela ocasião, ele estava conversando com a diretora, e foi a Ingrid quem me contou quem ele era. Assim que o vi entrando na sala, tive aquele pressentimento óbvio de que não podia mesmo ser um bom sinal.
Todo mundo ficou quieto, e a coordenadora tentou nos sorrir um “bom dia”. Mas a única coisa que ela conseguiu foi parecer que estava com uma bruta dor de dente.
Começou aquele papo de que era fim de ano, que todos nós estávamos de parabéns pelo excelente trabalho, que sabíamos o quanto tinha sido duro, mas que todo o esforço tinha valido a pena, e blá, blá, blá. Eu mal estava prestando atenção.
Mas então veio a bomba:
– Infelizmente, viemos trazer notícias ruins. – a diretora disse, fazendo uma pausa estilo filme de suspense – Nós não retornaremos ao período letivo do ano que vem.
Oi?
Como é?
Por favor, me diga que eu estou sonhando!
– O nosso colégio terá que fechar as portas. – foi a vez do velho infeliz que dizia ser dono da escola falar, e quanto mais ele falava, mais eu tinha vontade de morrer – Há muito tempo temos tido problemas com dívidas por falta de pagamento de mensalidades, e não estamos mais podendo arcar…
Fechei meus ouvidos pra todo o resto, e me concentrei em apenas uma coisa:
O colégio ia fechar.
Nós estávamos todos no olho da rua.
Principalmente, EU estava no olho da rua. Porque praticamente todos os professores tinham mais de um emprego. Tipo, só a Ingrid trabalhava em três escolas diferentes! Mas eu? Eu, não. O Jorge tinha me convencido de que eu não precisava trabalhar tanto, porque quase não tinha gastos, porque quando nós nos casássemos – o que seria em breve – iríamos dividir as despesas e…
MAS EU NÃO TINHA MAIS O JORGE!
E AGORA EU NÃO TINHA MAIS EMPREGO!
Ai, meu Deus, como isso pôde acontecer? DEUS, POR QUE VOCÊ FOI FAZER ISSO COMIGO?
Percebi que gritei isso em alto e bom tom quando todo mundo na sala dos professores parou e ficou olhando pra minha cara. A Ingrid parecia ao mesmo tempo assustada e à beira de um ataque de riso.
– Desculpe, professora? – a coordenadora me fuzilou com o olhar.
Ferre-se ela, eu estava desesperada!
– Por que não fomos avisados com antecedência? – eu comecei a perguntar, soando mais e mais histérica a cada palavra – Nem todo mundo aqui tem um segundo emprego! E agora, o que exatamente vocês esperam que a gente faça?
– Nós só pensamos… – a diretora começou a falar, mas eu a cortei no ato.
– Vocês não pensaram, e esse é exatamente o problema! – eu levantei, e bati a mão na mesa – Aposto que nenhum de vocês ta preocupado com o que vai fazer ou como vai pagar as contas de casa! Aposto que o senhor – e apontei pro dono da escola – Vai vender o prédio por uma fortuna e ficar sem trabalhar pelo resto da vida! E que se ferrem os funcionários, não é mesmo?
E dito isso, eu simplesmente saí da sala e corri em direção ao banheiro feminino.
O que eu tinha acabado de fazer?
Dois minutos depois, a Ingrid veio atrás de mim. Ela me abraçou e me segurou enquanto eu chorava, mas dava pra sentir, pelo jeito como ela estava tremendo, que estava tentando reprimir o riso.
Um segundo depois, nós estávamos gargalhando. Rimos tanto que a minha barriga começou a doer e eu tive que sentar no chão do banheiro porque não conseguia mais ficar de pé. Meu corpo todo se chacoalhava no ritmo da risada. Quando, por fim, conseguimos parar de rir, era como se dez quilos tivessem sido tirados das minhas costas de algum jeito.
– Você deu um show, sabia? – minha amiga disse, entre risos. Eu funguei e dei um cutucão na barriga dela.
– Eu só fui pega de surpresa numa época ruim! – a realidade e a seriedade da situação me abateram, e de repente a coisa toda perdeu a graça – Tipo, não basta ter sido chutada, agora estou desempregada. Deus deve ter uma listinha com todas as maneiras que ele pode tirar a minha dignidade, só pode ser.
A Ingrid foi parando de rir e me olhou com aquela cara de “não vou nem falar nada”. Bom, pelo menos ela estava do meu lado, e falando comigo. Resolvi não dizer mais nada, e, por um bom tempo, fomos só silêncio, amizade e ataques de riso esporádicos.
– O que eu vou fazer agora? – perguntei, baixinho. A Ingrid demorou tanto pra responder, que eu achei, honestamente, que ela fosse simplesmente voltar à sua política de não falar comigo. Mas ela se ajoelhou na minha frente e tirou os cabelos grudados no meu rosto.
– Vai recomeçar, ué! – ela deu dois tapinhas leves nas minhas bochechas – Levantar, sacudir a poeira, começar de novo. É pra isso que servem as quedas.
Foi a minha vez de demorar pra responder. A Ingrid era muito positiva, sempre muito pra cima, e a idéia toda de recomeçar era mesmo muito bonita e tentadora – na teoria. Na prática, ela parecia impossível de ser aplicada. Eu tinha passado os últimos dez anos seguindo uma linha quase imutável de vida, uma rotina sem fim em que o recomeço nunca havia sido uma opção simplesmente porque não havia queda.
E então, vinha aquilo. E minha melhor amiga estava me dizendo pra recomeçar.
Mas como era isso? Recomeçar, quero dizer. Nos livros e filmes parece bonito e fácil, as protagonistas apanham e tentam de novo e mudam sua vida e se tornam melhores, mas… como é isso no mundo real, onde as pessoas não são artistas de Hollywood nem tem roteiros prontos? Como se recomeça quando não se sabe por onde recomeçar?
– Como se faz isso? – resolvi perguntar, finalmente. De novo, ela riu de mim, mas dessa vez parecia um riso de compaixão.
– Você esquece o que passou e olha pra frente.
– Não dá pra esquecer a sua vida inteira.
– Mas dá pra escolher quais partes dela você quer lembrar. – a Ingrid se levantou e me ajudou a ficar de pé – Vai, Babi, faz isso por você. Agora é a hora perfeita. Você não tem nada pra perder!
Nisso ela tinha razão. Eu não tinha mais noivo, nem emprego, não fazia mais nada da minha vida. Podia muito bem fazer qualquer coisa, e isso não atrapalharia em nada de fato. Nada estava me impedindo.
A não ser eu mesma.
– Você vai deixar eu te ajudar? – ela insistiu.
Naquele momento, dentro daquele banheiro encardido, com o rosto inchado de tanto rir e chorar, alguma coisa baixou em mim. Foi , ao mesmo tempo, o maior erro e o maior acerto de toda a minha vida, mas eu ainda não sabia disso. Só o que eu sabia era que alguma coisa dentro de mim entrou em colapso naquele exato momento, e que eu decidi fazer algo que nunca havia feito na minha vida:
Ligar o foda-se e tentar ser feliz.
Tipo, dizem que funciona, né?
– Deixo. – eu sorri. A Ingrid começou a comemorar e eu, meio hesitante, só pude acompanhá-la.
Eu nem imaginava o que ela tinha em mente.
(continua…)
Adorei o segundo capítulo. Esperando ansiosamente o terceiro.
🙂