Recomeçar – Parte VI

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Parte I
Parte II
Parte III
Parte IV
Parte V


Todo final de semana a partir de então era um programa diferente, sempre com a mesma turma. A Ingrid me levou pra fazer coisas que até então eu nunca tinha feito – jogar sinuca, cantar no karaokê, descer pra Santos por apenas algumas horas, fazer pique-nique no Parque do Ibirapuera e coisas do tipo. Eu estava me divertindo como nunca. Os meses se passaram numa velocidade absurda, e, depois do fim do ano, eu mantive meu emprego na mesma loja com o Gustavo.
Eu não me cansava da companhia dele. Ele era muito divertido e, em pouco tempo, eu já sabia tudo sobre ele e ele já sabia tudo sobre mim. Nos tornamos companheiros inseparáveis e, por mais que todo mundo (ou seja, Ingrid) insistisse no fato de que não podia ser só isso, nada passou da amizade. Eu sentia que ele me olhava diferente, e meu coração pulava quando ele olhava pra mim, mas eu não sabia ainda se estava pronta pra outra.
Então surgiu a idéia de viajarmos durante o carnaval. Os tios do Marquinhos tinham uma chácara em Piracicaba, no interior de São Paulo, e todo mundo aprovou a idéia de passar o feriado prolongado por lá. Quem não gostou da idéia foi nosso chefe, meu e do Gustavo, quando pedimos pra compensar todas as folgas que não havíamos tirado ao longo do início do ano saindo durante o carnaval. Depois de muita conversa – e de muita lábia por parte do Gustavo – conseguimos.
Eu devia saber no que aquilo ia dar. Mas lá fui eu, no auge dos meus 24 anos, na maior inocência.
Lotamos a chácara com toda a turma, mesmo havendo apenas três quartos – nada que muitos colchões espalhados pelos cômodos não pudessem resolver. O clima estava ótimo, e estava tudo perfeito nas primeiras horas. Depois que tínhamos nos instalado, os rapazes resolveram acender a churrasqueira e, enquanto todo mundo assava a carne, ouvia música e bebia cerveja, eu estava na minha, olhando pro nada, sentada numa rede.
Minha pseudo-meditação foi interrompida quando o Gustavo se sentou do meu lado na maior cara de pau. Eu dei uma cotovelada leve na barriga dele e brinquei:
– Eu não me lembro de ter te convidado!
– E eu não me lembro de ter visto seu nome escrito na rede! – ele replicou, e eu ri.
– Meus alunos do quinto ano não respondiam assim!
– Ah, que seja!
Engatamos na conversa, e o tempo passou despercebido. Paramos pra comer, então reassumimos nosso posto e longas horas correram enquanto a gente falava dos mais diversos assuntos. Quando fui ver, já era noite, e quem não estava na fila pro banho estava jogando pôquer numa mesa perto da churrasqueira.
– Você não vai jogar pôquer? Achei que todos os caras gostassem de pôquer! – falei, depois de um tempo. Ele negou.
– Eu não sei jogar pôquer! – admitiu, com certo embaraço.
– Ok, você é o cara mais incomum que eu já conheci. Daqui a pouco vai me falar também não gosta de cerveja!
– Peraí, não cheguei nesse extremo ainda! Eu só não sei jogar pôquer.
Silêncio. Eu estava evitando o olhar dele enquanto observava o pessoal jogando, mas podia sentir que ele estava me olhando de um jeito meio fixo. Era incômodo.
– Se você quer se ver livre de mim, só precisa falar. – o Gustavo disse, de repente, e eu corei.
– Não! – me apressei em dizer, mas em parte, eu sabia que estava mentindo – É só que a gente ta aqui desde que chegou. Você não cansou ainda não?
Eu estava dizendo aquilo pra não ser mal educada e pra que ele não se chateasse comigo, mas, mesmo que parte de mim quisesse ficar na companhia dele, outra parte estava incomodada com tanta aproximação. Era difícil deixar alguém chegar tão perto e se tornar tão íntimo quanto o Gustavo estava ficando. Eu não estava certa se queria que as coisas tomassem outro rumo.
– Não. – ele respondeu, dando de ombros – Além do mais, eu estou muito bem acompanhado. Eu não trocaria a sua companhia por um jogo de pôquer.
– Você diz isso porque não sabe jogar. – brinquei, pra disfarçar o fato de que eu estava louca pra enterrar minha cabeça na terra como se fosse um avestruz.
Mais silêncio. Internamente, eu batalhava comigo mesma pra tentar entender que inferno de sentimento era aquele. Como eu podia querer que ele estivesse longe e perto ao mesmo tempo? Era muito estranho, não dava pra dialogar as duas coisas! Eu não sabia o que era mais intenso, a necessidade da companhia dele, ou a urgência de fazer com que ele se afastasse.
Me virei rapidamente quando o Gustavo suspirou, e vi que aquele sorriso maravilhoso tinha deixado o rosto dele. Ele estava apoiado nos joelhos, cabeça baixa, e então me olhou torcendo o nariz de um jeito desapontado.
– Eu não to conseguindo, né? – ele perguntou, e eu fiz que não entendi.
– Conseguindo o que?
– Chegar nesse seu coração fechado.
Não respondi. Estava muito preocupada tentando, a) não ficar boquiaberta, e b) não morrer totalmente de vergonha.
– Gustavo, por favor, não transforma a nossa amizade em outra coisa. – pedi, sentindo o coração doer. Não a dor que eu senti quando o Jorge me deixou, mas algo diferente e, de alguma forma, tão intenso quanto.
– Babi, você sabe que eu gosto de você, certo? – ele insistiu, apesar do meu protesto – Tipo, você já percebeu, né? Porque todo mundo já sacou.
– Gustavo…
– Eu to fazendo um esforço enorme pra respeitar o seu espaço, Babi. Eu tenho tentado de tudo pra fazer você entender, pra fazer você abrir o seu coração, mas eu não sei mais o que fazer.
O que eu podia dizer? Eu sentia vontade de morrer. Eu estava, de fato, morrendo.
Maldito, por que você estava fazendo isso comigo?
– Eu me encantei por você desde a primeira vez que eu te vi! – o Gustavo continuou, e os olhos dele brilhavam enquanto ele olhava pra mim – Eu entendi quando a Ingrid me contou sobre o lance com o seu ex, e eu percebi que teria que ir com calma, mas isso ta me matando! Eu não consigo te ver só como uma amiga! E você?
Por que ele foi perguntar isso? Por que, POR QUÊ????
– Eu não sei. – respondi, sinceramente. Meu corpo inteiro formigou de nervoso. Não queria ter admitido aquilo em voz alta.
– Eu achei que não fosse gostar de mais ninguém depois da Débora… – o Gustavo disse, referindo-se à sua ex que também o tinha abandonado – E acredite quando eu sei exatamente o tipo de dor que você sentiu. Mas te conhecer fez com que ela perdesse a importância. Não dói mais. Você é a única coisa em que eu penso o tempo todo! E eu não consigo entender qual…
– Eu não sei se eu to pronta pra outra! – exclamei, interrompendo aquela declaração de amor maravilhosa. Meu coração estava acelerado a ponto de explodir – Ainda machuca muito! Eu não tenho certeza se…
– Se ainda gosta dele? – completou – Babi, vai ficar mais fácil quando você admitir pra si mesma que acabou de uma vez por todas. Tem que aceitar isso. E quando você aceitar, eu vou estar aqui pra você.
Ele beijou a minha mão e se levantou da rede. Enquanto ele se afastava, senti um pedaço meu indo junto. Pior do que encarar aquele turbilhão de sentimentos era encarar a ausência do Gustavo. A presença dele facilitava muito a minha não-depressão. Era como uma injeção de alegria.
E agora ele não estava mais ali. E a culpa era toda minha.

(continua…)

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