O Diário (nada) Secreto 2 – Capítulo 1

 Bem-vindos à vida dos jovens comuns de classe média. Lolita nos dá a visão panorâmica da vida de qualquer adolescente, repleta de ciúmes, festas, fofocas, amizades e sofrimento.No segundo volume da série, enquanto pra uns a vida se torna um misto de fama com vida normal, pros menos afortunados é um ano de dramas amorosos, traições e rompimentos. Lana se apaixona por outro cara, Lolita enfrenta um enorme drama familiar recheado de segredos e Suellen se depara com uma novidade nem um pouco agradável.
Embarque num mundo que você já conhece em um diário onde nenhum segredo é mantido por mais tempo que o necessário para se tornar uma bomba.

Prólogo

A adolescência é a melhor fase onde descobrimos as coisas que existe de especiais nesse universo imenso e repleto de coisas interessantes e valorosas.
Eu li essa frase uma vez em algum lugar. Deve ter sido numa agenda, sabe como é, aquelas frases inspiradoras do dia.
Mas uma coisa eu te digo.
Quem quer que tenha dito isso certamente não foi adolescente.
Tem coisa que a gente descobre que é tão especial que seria melhor não descobrir!
E, se vocês querem mesmo saber, aquele ano começou uma droga. Pelo menos pra mim. A Bela ainda não olhava na minha cara e a minha mãe não confiava em mim pra me deixar sair de casa depois que o Edson me levou pra comemorar o fato de eu ter passado de ano.
Mas como dizem os sábios de verdade, se está ruim, relaxe que já, já piora!
Um beijo da ainda amiga,
Lolita.

Capítulo 1 – Amigas Para Sempre

Ah, Janeiro!
O melhor mês do ano!
Aquele mês em que você está tão ansiosa pra que as férias terminem que fica na maior expectativa fazendo suas compras pra escola, desde cadernos até lapiseiras, borrachas e todo tipo de coisa que você ainda tem, mas simplesmente adora comprar.
Era o que eu estava fazendo com o Edson, logo na primeira semana do ano. Embora ele precisasse de muito mais coisa do que eu pra faculdade – a lista de materiais, incluindo livros, do curso de Biologia Marinha dele era extensa – materiais escolares eram umas das poucas coisas que eu gostava de comprar.
Além do mais, eu estava simplesmente muito animada pra voltar à escola agora que eu tinha certeza de que havia passado de ano. Certeza que, infelizmente, a família dele não compartilhava.
– O Henry fugiu pra ir numa festa de ano-novo, eu te contei? – o Edson comentou comigo, enquanto eu passeava, com os olhos brilhantes, pela sessão de cadernos.
– Jura? E no que deu? – perguntei, sem saber se eu estava mesmo interessada na resposta. Porque o Henry já tinha fugido pra fazer mil coisas desde que a mãe deles declarara um castigo sem data pra terminar. Não era novidade.
– Minha mãe pegou ele pela orelha quando o achou na festa. Pelo menos foi o que ela disse. – ele riu, e pegou na mão um caderno com a capa brilhante e azul da Hello Kitty – Esse é a sua cara. – e me deu.
– Ele é tão lindo! – exclamei, já me apoderando do caderno – Sua mãe vai mesmo deixar o Henry continuar no Santa Rita?
– Vai. – ele bufou – Não que vá ser fácil pra ele. Vai ser foda, Lolita, meus pais vão marcar em cima mesmo, agora! E ainda na mesma sala que a Lana! O coitado vai sofrer!
– Não exagera! Você faz a sua irmã parecer um monstro.
– Você tem sorte de não ter irmãos.
Não respondi. Todo mundo me dizia isso, e na maior parte do tempo eu concordava. Era legal ter uma casa e uma mãe só pra mim, era legal não ter ninguém pra me encher o saco. Mas às vezes eu me sentia sozinha, principalmente quando as coisas apertavam pro meu lado. Se eu tivesse um irmão, pelo menos poderia dividir a culpa.
Continuei fazendo as minhas compras até que percebi que eu não tinha dinheiro pra pagar por tudo aquilo e me desfiz de itens totalmente dispensáveis – lê-se um caderno a mais do que o necessário, duas lapiseiras e um apontador, quando eu sequer usava lápis!
Mas tive vontade de morrer mesmo quando, no caminho para o caixa, me deparei com quatro figuras muito conhecidas e meu estômago murchou, meus olhos se encheram de lágrimas e então ela olhou na minha direção.
Bela. Belatriz, minha ex-melhor amiga, com quem eu estava brigada há uns bons meses desde que eu optara por ajudar sua irmã gêmea e ao mesmo tempo totalmente diferente dela, Suellen, ao invés de dar ouvidos aos seus chiliques fora de hora.
E agora lá estavam as duas, acompanhadas dos pais, fazendo compras. Suellen sequer me viu, tão distraída que estava nadando na seção de cosméticos. Mas Bela me viu. E como viu. Vestindo as mesmas roupas pretas e o corte de cabelo esquisito, junto com a maquiagem pesada e os crucifixos no pescoço, Bela era de longe a figura mais esquisita da loja. E ela me achou tão logo eu a vi, e o olhar que me lançou foi tão gelado que pareceu gerar até mesmo uma névoa.
Então ela revirou os olhos, e deu as costas, entrando mais fundo na loja. Só aí, a Suellen se virou e me enxergou, vindo correndo até onde eu e Edson estávamos parados, eu com cara de tacho e ele… bem, eu não sei. Eu estava de costas pra ele.
– Lolitaaaa, tudo bem? – ela me deu um abraço animado, e então cumprimentou o Edson – Met, quanto tempo que eu não te vejo!
– E ai, Suellen? – ele disse, soando totalmente não-animado. Deve ser porque ele presenciou a cena “olhar mortal” entre mim e Bela. Olhar mortal por conta dela, devo acrescentar.
Ou talvez fosse porque o apelido “Met”, que o acompanhara desde os primórdios da sua adolescência, estava com os dias contados. Tendo recebido um apelido carinhoso para “metaleiro” por causa do estilo musical que ele curte e do cabelo comprido que ele usava desde, sei lá, os doze anos, ele seria menos “Met” daqui a algumas semanas, quando Edson faria parte do trote da faculdade e teria seu cabelo cruelmente raspado.
Ele fingia que não, mas eu sabia que ele não estava nem um pouco animado com isso. E eu fingia que não, mas eu não queria vê-lo careca. Algo me dizia que a) eu ia dar muita risada ou b) eu ia reclamar muito. Ou talvez os dois ao mesmo tempo.
– Ah, estou tão animada pras aulas! – Suellen exclamou, agitando seu corpinho perfeito de 1,69 por 50 kg. Então me mostrou duas caixas de tinta pra cabelo, uma preta e uma vermelha – Qual das duas? Estou pensando em mudar o visual!
– Suellen, tem que ser muito burra pra querer pintar um cabelo como o seu! – exclamei, rindo. Ela tinha cabelos castanho claros/louros escuros (cada um dizia uma coisa) perfeitos desde criança – O vermelho é legal, mas ainda prefiro seu cabelo desse jeito. E o preto é…
O reto da frase ficou entalada na garganta. Completá-la me traria uma tristeza enorme.
– Já entendi. – ela pôs as tintas de lado numa prateleira qualquer e fez uma careta – Aquela gorda não fez as pazes com você ainda?
– Acho que já era, Su. – dei de ombros, não disfarçando a tristeza – Sua irmã me odeia.
– Ela odeia todo mundo, Lolita. Mas eu não acho que ela odeie você.
Então meu namorado resolveu se meter.
– Diz pra ela, Suellen, que ela devia ir falar com a Bela. Porque ela não me escuta – reclamou. Suellen concordou, com aquela cara de “ele tem razão”.
– Devia mesmo. – afirmou – Eu posso ser burra pra um monte de coisas, Lolita, mas daquela ali eu entendo. Vai falar com ela.
Não respondi nada. Vontade não me faltava, é claro. Nem tentativas. Deus sabia que eu tinha passado a droga das férias inteiras tentando ligar pra ela, mandando e-mails, mensagens, sinais de fumaça. Mas ela me respondia? Não. Claro que não.
– Agora a gente tem que ir. – desconversei, já pegando na mão do Edson, pronta pra dar o fora – Tchau, Su. Me liga qualquer dia desses.
– Pode deixar. Mil coisas pra te contar! – exclamou, com uma piscadela – Tchau, Met.
Ela me deu um beijo estalado na bochecha e foi embora.
Ainda que a minha animação tivesse virado vapor, eu paguei minha conta e fui pra praça de alimentação com o Edson. Ele me pagou um sanduíche que eu mal consegui comer. Não adiantava disfarçar, aquela história toda da minha briga com a Bela estava me deixando pra baixo. Ela tinha sido a minha melhor amiga por anos, e agora nem olhava na minha cara. Dava pra ser pior?
“Dava”, minha vozinha interior irritante constatou. “Ela acha que você é uma traidora também. Porque preferiu a Suellen a ela. Ela te odeia tanto que nunca mais vai falar com você!”
Obrigada, consciência. Ajudou bastante.               
Da onde eu havia tirado aquela idéia idiota?
Sério, às vezes eu me impressiono com a minha capacidade de ser masoquista sem querer!
Na tarde seguinte, decidi que ano novo queria dizer organização. E eu tinha muito pra fazer. Eu não era muito bagunceira, mas meu quarto era um verdadeiro museu, de tanta velharia que continha. Cada armário era uma nuvem de poeira e uma pilha de coisas sem utilidade e com prazo de validade vencido.
Então aproveitei que eu tinha comprado um monte de coisas novas e me preparei pra me livrar das velhas. Péssima idéia.
Eu já estava no meu cubículo – carinhosamente chamado de quarto – há uma hora e parecia não ter feito progresso nenhum. Descobri relíquias no armário da minha escrivaninha como cartas de amor para um tal de Maurício na segunda série e meus livros preferidos de quando eu tinha dez anos; dentre eles “Quem Tem Medo de Dentista?” e o clássico “Onde Está Wally?”
Foi ai que começou a sessão nostalgia. Eram onze da manhã e eu estava sentada no chão do meu quarto, vestindo roupas velhas, com um pano de chão e uma garrafa de álcool em gel ao meu lado e milhares de coisas que eu nem sabia que ainda existiam em volta de mim. Um monte de lembranças começaram a me tomar, e quando eu vi, não podia mais me desfazer de nada.
Aquela camiseta velha do Santa Rita, da quarta série, assinada por todas as caligrafias monstruosas dos meus amiguinhos que me desejavam Feliz Natal e muitos presentes, além de um Próspero Ano-Novo – nós nos orgulhávamos de saber soletrar “próspero”! – estava socada ao lado do meu livro de português do mesmo ano. Ele estava sujo e cheirando a guardado, e após folheá-lo e me lembrar de uma aula ou outra, concluí que não precisava ser guardado.
Direto pra sacola de lixo que beirava a porta do quarto!
Meu caderno de desenhos da pré-escola também estava ali, perdido entre as lembranças. Na época, eu falava que ia ser modelo, dizendo tudo com a grande convicção de que modelo era quem desenhava as roupas – motivo pelo qual eu tinha vários modelos de pessoas de palitinho desfilando com roupas exatamente iguais com estampas diversas. Era a minha coleção mais criativa!
E meu livro de Estudos Sociais da primeira série! Eu adorava estudar o meio-ambiente, porque era tão fácil! Tinha sido a época mais consciente dos problemas ambientais na minha vida – fiquei uma semana sem tomar banho pra economizar água e meses sem comer bolachas ou salgadinhos pra reduzir minha produção de lixo. Eu era tão inocente… e radical!
Vi tanta coisa perdida ali no meio que fiquei definitivamente surpresa comigo mesma! Era uma bênção que a minha mãe estivesse trabalhando; ela ia surtar se visse tudo aquilo. Há meses – ou anos? – eu dizia a ela todo final de ano que, sim, mamãe, eu tinha limpado o quarto e, sim, mamãe, eu tinha me livrado das coisas velhas. E agora eu descobria coisas de 1998. Dá pra acreditar?
As horas se passaram muito rápido enquanto eu me livrava daquelas coisas todas. Muito pouco passou na minha rigorosa seleção sobre o que valia a pena ficar. Meus livros preferidos, minhas camisetas pichadas e algumas cartinhas, por exemplo. Mas muito se foi, e eu senti um peso no coração ao jogar metade da minha vida num saco de lixo. No final, pensei, era isso o que acontecia mesmo. A gente vivia, e então tudo era afundado e esquecido pra sempre.
Que profundo. Ta bom.
Terminei minha escrivaninha lá pelas duas da tarde, e fiz uma pausa pro almoço. A parte superior do meu guarda-roupa, eu sabia, guardava ainda mais coisas pra investigar. Suspirei e comi um prato de comida requentado do dia anterior, satisfeita com a minha determinação. Em geral eu não era muito esforçada quando se tratava de qualquer tipo de atividade que exigisse que eu entrasse em movimento constante. Tipo me mexer.
Peguei uma cadeira na cozinha assim que terminei e fui à luta para a segunda e, se Deus quisesse, última parte da minha batalha. Lá só havia várias sacolas e mil caixas diferentes, sem etiquetas nem nada.
Desci todas elas e as coloquei no chão, limpando-as por fora antes de abrir. Tinha realmente muita coisa. Tudo cheirava a tempo e mofo. Uma beleza de combinação.
Dentro da primeira caixa, estava o álbum de casamento da minha mãe. Eu nem sabia por que ela guardava aquilo. Era tão fora de propósito manter uma lembrança que a deixava tão magoada. O abri e me lembrei da primeira vez que eu o achara, quando eu tinha seis anos, assim que meus pais se separaram. Eu estava triste, e me consolei vendo a felicidade daquelas fotos, achando que era por culpa minha que eles estavam se separando.
Minha mãe arrancou o álbum de mim e o escondeu, dizendo que eu era uma enxerida e que, não, não era minha culpa o meu pai ser um calhorda idiota duma figa. Pelo menos agora eu sabia onde ela tinha escondido o álbum todo esse tempo. Bem ali, do meu lado.
Resolvi guardá-lo, só porque eu sabia que ficaria de castigo por tempo indeterminado caso resolvesse jogar tudo fora. Passei pra próxima caixa. Era meu álbum de formatura da oitava série. De longe, o momento mais legal e bobo da minha vida, porque eu achava que estava conquistando o mundo e o Ricardo estava sentado na cadeira atrás de mim. Ele ficou com outra menina durante a festa e eu fui pra casa mais cedo.
Não era uma noite memorável. Pelo menos não no sentido bom da coisa.
Caixa após caixa, fotos e fotos e coisas pré-históricas que não podiam ser jogadas fora. Lembranças de quando minha família era um trio feliz e meu pai me levava todo domingo pra tomar sorvete num lugar que até hoje eu procurava evitar. De quando meu pai se incomodava em fazer parte da minha vida depois de separado. De mamãe e seu primeiro e único namorado após a separação, há uns sete anos atrás, que não gostava de crianças, especialmente de mim.
E então veio a última caixa. Quando a peguei, eu já sabia de onde era e o que tinha dentro dela. Droga, eu queria sinceramente grampear a tampa na caixa, enfiá-la no saco de lixo e jogar tudo fora, sem abrir.
Mas não. Eu era masoquista e burra e já tinha chegado até ali. Eu ia até o final. E o final incluía encarar fotos e cartas e desenhos e lembranças da minha ex-melhor amiga.
Logo por cima já estava um desenho que a Bela tinha feito quando a gente estava na quarta série. Eu me lembrava daquele dia porque estávamos aprendendo a sombrear com aqueles lápis 3B – é esse o nome daquela coisa? – e enquanto eu só conseguia estragar o que já estava feio, a Bela tinha transformado um desenho de criança numa coisa fantástica.
Bom, ela sempre tivera jeito com essas coisas. Bela tinha desenhado duas menininhas – que não eram meros bonecos de palitinho – de mãos dados e escrito “amigas para sempre” em cima, e sombreado tudo de um jeito surreal. Dez anos e ela fazia mais do que eu faria hoje, aos quinze. Eu nem lembrava que ainda tinha o desenho. Naquele momento, eu me arrependia de ter guardado.
As coisas não estavam melhores depois disso. Aquela caixa continha uma porção de coisas que despertavam lembranças maravilhosas que eu preferia não ter. Nossa primeira foto juntas, aos quatro anos de idade, quando o uniforme do Santa Rita era feio e ficava pequeno em mim, porque eu era alta pra minha idade, e a Bela tinha os cabelos enroladinhos e castanhos claros. Ela tinha gentilmente cortado Suellen daquela foto quando a descobrimos nos meus álbuns de família, uns quatro anos atrás.
E as cartas! Quando nós éramos menores, as férias significavam um longo tempo sem se ver, e ainda que a gente morasse a tipo dois bairros de distância, parecia muita coisa. Por isso, a gente trocava cartas durante os meses de férias, contando como estavam as coisas e falando de besteiras de crianças. Ambas achávamos a experiência de colocar uma carta no correio muito mais legal do que conversar ao telefone.
Mais fotos. Um CD que ela tinha gravado pra mim com as suas músicas preferidas de rock – quando eu ainda me preocupava em tentar acompanhar seus gostos –; um colar que ela tinha me dado de aniversário de nove anos cujo pingente era um dente que tinha caído quando eu comia pipoca na casa dela (nunca me perguntei como ela tinha achado!); uma versão minha em anime, quando Bela começou seu curso de desenho e me transformou num tipo de Sailor Moon mais gorda, mais baixa e menos poderosa; poesias que a gente tinha escrito juntas, tão terríveis que nem valiam a pena serem guardadas.
Tanta coisa, tanta lembrança. Eu nem precisava prestar atenção pra saber que eu estava chorando. Eu queria, mas como poderia me livrar de tudo aquilo? Eu mal podia aceitar que a gente estivesse realmente brigadas, que a Bela não fosse me ligar dali a cinco minutos e perguntar que merda tinha acontecido pra eu estar chorando. Eu estava esperando havia meses pelo dia em que a Bela viria me procurar, e simplesmente não acontecia.
E ainda assim, eu não conseguia abandonar minhas esperanças.
Minha mãe resolveu chegar bem nessa hora. Eu não tinha me dado conta de como era tarde até então. Eu devia estar ali no meu quarto há horas, arrumando, limpando e inevitavelmente chorando feito uma bezerra desmamada. E quando minha mãe abriu a porta e viu aquela cena, tratou de entrar.
– Que bagunça é essa, Lolita? – ela quis saber.
Ah, que lindo. Eu estou botando os dutos lacrimais pra fora do olho de tanto chorar e ela repara na bagunça. As mães sempre vêem o que está errado primeiro pra depois repararem nas coisas importantes, tipo a infelicidade dos seus filhos, fato.
– Carlota, você ta chorando, filha?
Chorei mais. Não sei se porque ela tinha perguntado ou porque tinha me chamado de Carlota. Provavelmente uma mistura dos dois.
– O que aconteceu? – mamãe largou a bolsa no chão e veio pra perto de mim. Se ajoelhou ao meu lado, em meio à bagunça e viu no que eu estava mexendo.
Ela não disse nada por um bom tempo enquanto eu me afogava nas minhas lágrimas. Remexeu em tudo o que eu tinha desenterrado, desde o álbum de casamento até a caixa com todas as coisas da Bela. Talvez ela não entendesse o porquê de eu estar chorando. Ela sabia que eu e Bela estávamos brigadas, lógico – era a única razão pela qual a Bela não estava ali naquele exato momento, enfiada na minha casa por pelo menos quatro dias na semana.
– Você vai guardar tudo isso? – mamãe me perguntou, muito tempo depois, quando eu estava me acalmando.
– Eu não sei ainda. – eu falei, com a voz rouca e apertada de quem está chorando.
– Filha, por que você não vai falar com ela?
– Eu já tentei, mãe. A Bela não quer me escutar e ponto. Eu já liguei, já insisti, ela não quer saber.
– Então vai até lá. Vai até a casa dela, obriga a Bela a te escutar. – ela me abraçou – Fica calma, meu bem. Essa menina está sendo boba e infantil. Quando vocês conversarem tudo vai ficar bem.
Eu nem respondi. Eu realmente queria acreditar que tudo ficaria bem, mas era a maior mentira deslavada. Não ia ficar nada bem. Não importava o quanto eu tentasse, a Bela não ia me perdoar. Eu nunca iria tê-la de volta.
– Você devia ir até lá, filha. – minha mãe insistiu. Tive vontade de dizer alguma coisa do tipo “eu ouvi, mãe, não precisa repetir”, mas me limitei a fungar e assentir – Você não tem nada a perder. O que custa tentar?
É, o que custa tentar?
Acho que talvez fosse apenas medo. Medo de que ela fechasse a porta na minha cara ou me xingasse ou gritasse comigo. Era bem provável que a Bela fizesse pelo menos uma dessas coisas, senão todas elas. Ir até ela e tentar obrigá-la a me ouvir não era uma boa opção.
Mas era uma opção.
Coisa que eu não tinha no momento.
Ajudei minha mãe a guardar tudo de volta em seu devido lugar e ela tentou me distrair dizendo que estava feliz por eu finalmente ter limpado meu quarto e ter tirado tanto lixo de lá. Mal consegui parar de chorar pelo resto da noite. Parecia impossível que eu pudesse ficar bem de novo.
Mas ai eu dormi, e acordei na manhã seguinte com um pensamento bem diferente.
Porque a minha mãe estava certa. Ela estava sendo infantil e eu não tinha pisado tanto na bola pra merecer o tratamento que ela estava me dando. Eu não tinha nada a perder àquela altura – ela já não falava mais comigo, que diferença faria se ela não me escutasse? Pelo menos eu tinha tentado. Uma última tentativa.
Então é isso aí. Botei na cabeça que ia até lá e obrigar a Belatriz a me escutar, nem que fosse a última coisa que eu fizesse pela nossa amizade. Se nada daquilo adiantasse, era porque não tinha que adiantar. Era porque mais de dez anos de amizade não eram nada pra ela. E aí, eu não poderia fazer mais nada. Seria com ela.
Peguei minha bolsa e a chave de casa, contei o dinheiro pra condução e naquela mesma tarde fui pra casa dela. O caminho todo, tentava repassar mentalmente o que dizer pra ela. Porcaria, o que eu ia falar? “Sinto muito por não ter estado presente quando você precisou, mas você está exagerando”? Eu conhecia bem a Bela, sabia que isso só ia piorar as coisas.
Quando estava quase lá, percebi que não havia nada que eu pudesse fazer pra poupá-la de um pensamento ruim se ela quisesse ver as coisas do seu jeito. Eu a conhecia melhor do que ninguém. Já tinha visto esse filme tantas vezes que já sabia o que viria a seguir. Mesmo que eu escolhesse bem as palavras, ela só veria o que quisesse ver. Não havia nada a ser feito quanto a isso.
Mesmo assim, eu ia tentar. Porque eu achava que ainda valia à pena. Mantive esse pensamento até a hora em que toquei a campainha da casa dela e esperei, trêmula e nervosa.
Eu devo ser mesmo uma pessoa sortuda, porque de todas as pessoas daquela casa, foi ela quem abriu a porta. Bela parecia carrancuda, e só ficou ainda mais quando me viu. Ficou uns dois minutos parada, me olhando, até que decidiu que talvez fosse legal bater a porta na minha cara.
Nessa hora eu achei que os filmes haviam me ensinado alguma coisa útil e parei a porta com o pé. Claro que a mantive aberta (a porta), mas a pancada fez meu pé latejar, e eu soltei um grito.
Bela abriu a porta de novo, ainda mais carrancuda e me olhou como se eu tivesse algum tipo de doença. Depois deu as costas e deixou a porta aberta.
Mancando, eu entrei e fechei a porta, tentando ao mesmo tempo alcançá-la na escada, onde ela já havia subido uns bons degraus. Quando viu que eu tinha entrado só começou a subir mais depressa, num ritmo que eu, em plena forma de Saci-Pererê, não conseguia acompanhar.
Quando cheguei no andar de cima, ela já tinha entrado no quarto, batido a porta e a trancado. Ótimo.
Bati duas vezes na porta, bem forte, e não obtive resposta. Estava tão cansada, com dor e triste que podia começar a chorar a qualquer segundo se eu não me contivesse. Então me deixei cair no carpete que cobria o segundo andar e fiquei ali, sentada na soleira da sua porta.
Suellen apareceu na porta do quarto no mesmo instante, e deu um sorriso cheio de esperança quando me viu sentada lá, fechando a porta com cuidado e me deixando sozinha no corredor.
– Bela, você não quer me escutar. – falei, pro nada, pra ela, pro mundo – Eu já entendi isso. Mas quer saber? Foda-se. Você vai me ouvir mesmo se não quiser me ouvir.
Ela ligou o rádio nas alturas, então Suellen saiu de novo do quarto, indo dessa vez em direção ao banheiro. Parou no meio do caminho, abriu uma portinhola, mexeu em alguma coisa e…
BUM. O som parou. Entendi, então, que ela tinha desligado a chave de energia da casa. Ela me deu uma piscadela antes de entrar de novo no seu quarto, e eu ouvi Bela bufando, irada, dentro do seu próprio cômodo.
– Eu sei que eu te deixei na mão numa hora que você precisou de mim. – continuei falando, sem ter como ser interrompida agora – Foi errado. Você tinha razão de estar magoada. Mas não desse jeito. Não porque você acha que eu te troquei pela sua irmã. De onde você tirou essa idéia?
Sem resposta. Como se eu não soubesse.
– A sua amizade é muito importante pra mim, e eu não quero que as coisas fiquem desse jeito com a gente. Não é justo. – suspirei – Naquele dia, eu não te virei as costas porque não sou sua amiga. Eu não te virei as costas, pra falar a verdade. Eu optei por ajudar outra pessoa que precisava de mim.
Ouvi uma risada de ironia. Que ótimo saber que não estava funcionando.
– Você é cabeça dura e chata e irritante, mas ainda assim é a porcaria da minha melhor amiga há anos. – prossegui, querendo chorar ainda mais – Por favor, não estrague tudo só porque você não é a única amiga que eu tenho. Não jogue tudo fora por ciúmes.
A porta se abriu, então, e eu quase caí pra trás. Ela estava lá, me olhando de cima, com raiva e lágrimas nos olhos.
– Eu já joguei. – ela me disse, quebrando o meu coração em um milhão de pedacinhos inúteis – Aliás, você jogou primeiro. Você sempre soube que a coisa tem dois lados aqui: ou meu ou o dela.
– Por que eu não posso ter outros amigos, droga? – eu quase gritei, sem entender – Isso nunca faria diferença!
– Faria sim! – ela gritou, numa histeria que eu não compreendia – Porque todo mundo sempre escolhe ela, e você escolheu ela também!
– Você está sendo infantil!
– Então seja adulta com a gêmea perfeita, Lolita. Eu não me importo mais!
Entrou e fechou a porta na minha cara.
Uau. Foi muito pior do que eu esperava, realmente.
Eu nem conseguia chorar, de tão passada que eu estava. Aquilo tinha sido a gota d’água. A Bela tinha sempre sido tão sensata que não dava pra acreditar que era aquilo que se passava pela cabeça dela. Ela precisava de ajuda psicológica!
Respirei fundo e comecei a descer lentamente as escadas, no meu caminho pra bem longe dali. Agora, com ou sem problemas psicológicos por parte dela, eu tinha a minha resposta.
A nossa amizade não tinha mais volta.
A Suellen me ligou no dia seguinte. Eu ainda estava mal, mas fingia que tudo estava bem pra todo mundo. Não havia necessidade de fingir pra ela. Ela havia escutado tudo.
– Minha irmã é uma vaca! – ela gritou, e eu sabia que a Bela estava em casa e ela queria que ficasse bem clara a sua opinião – Você merece uma amiga melhor, Lolita, MUITO MELHOR.
– Não precisa gritar. – brinquei. Seus berros, na verdade, estavam me fazendo rir – Ela já me odeia sem isso.
– Deixa ela te odiar. Essa garota é tão ranzinza que vai criar rugas antes do tempo! – exclamou, com seu tom de patricinha inconformada. Eu ri.
– Obrigada por obrigar a Bela a me escutar ontem. – falei, com um ar derrotado – Mesmo que não tenha dado certo.
– Eu não queria que as coisas ficassem assim, Lolita. A Bela é uma imbecil, gorda e mala, mas eu sei que a amizade dela significa muito pra você.
– É.
– Eu posso não ser a mesma coisa, mas você pode contar comigo, ta bom? – fez uma pausa – Quer sair e fazer umas comprinhas pra se animar?
– Não, valeu. – ri. Só mesmo a Suellen!
– Quer que eu alugue uns filmes de fossa e compre um pote de sorvete?
– Só se forem dois potes de sorvete.
– Ai, minha celulite! Tudo bem. Só porque você precisa e porque, no momento, você é a única amiga que eu tenho!
– Bom saber que eu não sou a única em estado crítico de amizades.
– Nem me fale. Acho que vou colocar um anúncio no jornal procurando por uma amiga decente e que goste de fazer compras.
– Fazemos isso quando você chegar aqui. Até daqui a pouco.
– Até.
Ela desligou, e eu me senti um pouquinho melhor em relação a tudo. Eu tinha sido sincera quando disse que era bom ter alguém que entendesse a minha dor só um pouquinho – a Suellen, no fundo, era uma pessoa sozinha. E estar com ela era fácil e divertido. A sua futilidade e banalidade com relação a praticamente tudo faziam com que os meus problemas parecessem menores.
E não é porque uma amizade acabou que as outras também têm que acabar.


[continua…. dia 26/10]

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