Histórias que nunca escrevi

Minha avó era uma pessoa incrível. Não sou a única que sabia disso, mas é incrível como a gente deixa certos detalhes passarem de vez em quando, achando que os teremos pra sempre.

Ela adorava contar histórias. Perdi as contas de quantas vezes ouvi as várias anedotas sobre seus tempos de menina, de quantas vezes implorei pra que ela me contasse como era a vida no início do século vinte. Eu amava passar a noite na casa dela pelo simples prazer de ouvi-la contar histórias sobre sua vida antes de eu dormir. É um prazer da minha infância ao qual sempre dei muito valor, mas que nunca compartilhei com ninguém. Eram segredos nossos, essas histórias, dignos somente dos netos sortudos que estivessem por perto pra ouvir.

Minha avó era a minha melhor leitora. Ela foi nos meus lançamentos e comprou todos os meus livros, e leu todos eles mesmo não gostando do gênero fantasia. Se eu perguntasse o que ela tinha achado, ela diria sempre “é tão bom quanto aquele outro”, e isso bastava pra mim. Minha avó nunca questionou minhas escolhas, nunca perguntou se eu queria fazer outra coisa da vida. Ela era a única que não achava estranho a neta pedir livros em todas as datas comemorativas, e que ria quando eu falava sobre algum livro que eu estava lendo.

Ela amava cozinhar, e amava ainda mais fazer os doces preferidos dos seus mais de dez netos. Italiana e cozinheira de mão cheia, é difícil pensar numa pessoa que a tenha conhecido e não tenha se rendido aos prazeres dos seus bolos, pudins e massas. Sinto falta de vê-la cozinhando, de perguntar a receita do bolo sagrado de chocolate e receber como resposta “ponho isso e aquilo”. Já tentei reproduzir a receita, mas sei que nunca vou conseguir. O ingrediente secreto era ela. Eu sonhava em levar meus filhos pra um dia provarem dos doces da vovó Tonha, mas nunca vai acontecer. Essa doce memória morreu com a minha geração.

Minha avó era uma pessoa extremamente aberta ao mundo. Nunca vou me esquecer do dia em que, com seus 80 e poucos anos, eu contava a ela a história de um amigo que sofreu bullying por ser gay e ela me soltou a pérola “mas por quê? Ele não está fazendo nada de errado”. É impressionante o quanto uma senhora pode ensinar ao mundo em termos de aceitação, e depois de viver diversas decepções familiares sobre o assunto, descobrir que ela, e justo ela, era tão aberta e compreensiva, renovou minhas esperanças no mundo. Pra ela, amor era amor, e ninguém devia ser punido por amar.

Ela nunca reclamava da vida. Juro, nunca mesmo. Minha avó foi professora, servidora pública por mais de vinte anos. Passou fome, vivia com uma aposentadoria de merreca, estava doente há quase duas décadas. Mesmo assim, não me lembro de ter ouvido ela falar sequer uma vez algo de ruim sobre a própria vida ou sobre as pessoas que a cercavam. Ela era dotada de uma luz fabulosa e de um espírito bom demais pra ceder às tentações da língua. Sabe o tipo de pessoa que te vê gorda e pergunta se você emagreceu? Essa era ela. E não fazia pra agradar ninguém. Simplesmente era parte da sua natureza.

Minha avó foi uma mulher incrível, que viveu intensamente cada um dos seus quase 84 anos de vida, e que me ensinou milhares de lições que levarei comigo pra sempre. Não consigo pensar num dia importante da minha vida em que ela não tenha estado presente, e é difícil ter que imaginar minha vida daqui por diante sem ela. Ela nunca vai me ver casar, nunca vai segurar seus bisnetos no colo, nunca mais vai poder segurar minha mão enquanto a gente assiste a novela das seis. Mas essas lembranças, essa vida que ela construiu em torno de todos nós, elas permanecem, e isso será nosso pra sempre.

Pode ir, Tunica. Me espere do outro lado. Um dia a gente se encontra mais uma vez.

1 thought on “Histórias que nunca escrevi

  1. Oi, Lari! Como vai?
    Por um segundo pensei que essa pergunta – como vai? – fosse um tanto quanto irônica e só a fiz por ser um costume. Mas depois eu pensei de novo e resolvi deixá-la aí. E é sincera. Como vai?
    No facebook, sou o tipo de pessoa observadora, simplesmente. Eu posso ver as postagens e curtir ou apenas ignorar, porém raras serão as vezes em que vou expor minha opinião. Costumo fazer isso para mim mesma. Só que aqui não é um facebook, é um blog, o seu blog, e posso dizer que sou mais adepta a fazer comentários em blogs do que em redes sociais. E aqui estou eu, tudo isso para te dizer que eu sinto muito e mandar os meus pêsames. De coração.
    Sua avó parece mesmo ser uma pessoa incrível. Aliás, a maioria parece, sabe? Os idosos atuais, pelo menos os que eu conheço, considerando que eu não conheço muitos dessa faixa etária. Eles são os tipos de pessoa que eu tenho medo de não ser no futuro. Boas, carinhosas, cheias de vida e que, apesar de tudo, não reclamam da vida, enquanto o que eu mais faço nessa vida é reclamar, e odeio isso. Só que essa é a vida, não é? Começo, meio e fim, e tudo o que restam são memórias que podem ser eternizadas através de fotos e escritos, mas nada, nada reproduz esses pequenos momentos melhor do que a nossa mente. E são eles que nos fazem continuar. Guarde-os bem.
    Apesar de tudo, você sabe que ela continua aí, com você, e nem eu nem ninguém precisamos falar isso, são só… costumes sociais, eu acho. De qualquer forma, é uma verdade. Acredito que as pessoas nunca se vão verdadeiramente; enquanto alguém se lembrar delas, elas viverão. Para sempre.
    Com amor e muito apoio,
    Karol.

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