A Fome

“Estou com fome.”

Por muito tempo, essa foi a minha frase mais odiada é mais querida. Querida porque, quando ela era dita, significava que estava na hora de comer. Odiada porque eu não tinha permissão de dizê-la.

Dos quinze aos dezessete anos, tomei um remédio para controlar o apetite que hoje é considerado tarja preta. Eu me orgulhava de não sentir fome – me sentia superior pelas horas sem comer. Mas quando parei com a medicação, o jogo virou. Eu, que já não sentia fome há anos, de repente estava faminta o tempo todo, mesmo que tivesse acabado de comer.

Mas sabe, tinha um problema: eu estava acima do peso (como, aliás, sempre estive). E quando você é/está gordo, ninguém enxerga a sua fome; todo mundo enxerga a sua gula.

“Você não comeu agora há pouco?”
“Mas já?”
“Ah, eu ainda não estou” – minha preferida. Como se a sua vontade de comer devesse influenciar a minha.

Naquela época, aprendi que eu, gorda, não podia ter fome nem vontade de comer. Eu sentia, mas não devia falar; já estava gorda, não devia estar procurando mais comida. Então desenvolvi um hábito de só dizer que estava com fome se alguém dissesse antes de mim. Era uma competição, e eu não podia perder.

Desnecessário dizer a frustração que me seguiu e me segue até hoje. Eu me privei de um direito tão básico que não demorou até eu me privar de outros mais. Não me sentia no direito de reclamar de nada porque eu estava gorda. Qualquer que fosse meu problema, ele certamente seria minha culpa. Não posso reclamar da fome. Não posso reclamar da dieta. Não posso reclamar do preconceito. Não posso reclamar da falta de roupas. Quer direitos? Emagreça. Perca peso. Esforce-se e quem sabe você entra no seleto grupo de pessoas que, por pertencerem ao padrão, tem direitos.

E é por isso que hoje eu falo. É por isso que hoje eu reclamo – do preconceito, da falta de espaço, mas principalmente da fome. Porque não preciso ser de certa maneira para ter permissão pra alguma coisa. Posso porque existo, porque sou humana. Brigo pelo meu espaço e meu direito de ser e existir, porque desde que me conheço por gente, estão tentando aos poucos me privar disso. Mas não mais. Se eu tiver fome – de comida, de respeito, de representação – nunca mais vou me calar.

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