Colônia

Essa semana eu tive um sonho muito, muito bizarro. Uma espécie de loucura pós-apocalíptica, pessoas tentavam se salvar de monstros que invadiam um complexo no meio do deserto. Infelizmente, acordei na metade dele, e fiquei pensando – como será que ele termina?

Resolvi escrever. E depois que escrevi, resolvi trazer. Então lá vamos nós. Espero que vocês. gostem 😉

“Estamos há 130 anos, 5 meses e 22 dias na Colônia.
Colônia. Um nome desses faria qualquer um imaginar que estamos ali por escolha própria, que estamos, de alguma forma, espalhando nosso alcance para alguma terra longínqua, alcançando novos povos ou qualquer coisa do tipo. Não estamos. A Colônia nada mais é que um esconderijo. Um lugar para onde a humanidade – ou o que restou dela – correu quando as coisas ficaram difíceis.
Não que a vida seja fácil na Colônia. Não é. Mas não deve ser muito melhor do lado de fora, imagino.
A Colônia é uma espécie de forte no meio do deserto. Há muros de quase cinco metros nos cercando por todos os lados, e espaço suficiente para abrigar as quase três mil pessoas que vivem aqui atualmente. Todo mundo na Colônia ganha um trabalho a partir do momento em que para de fazer xixi na cama. Há crianças acompanhando os pais em suas tarefas, e adolescentes nas linhas de frente de produção de comida, e adultos cuidando da organização e proteção do nosso lar. E há eu, treinada desde cedo para ser um soldado, acompanhando meu pai em expedições pelos muros e aprendendo sobre nosso sistema de segurança desde que tinha dez anos.
Estou há 16 anos, 3 meses e 10 dias na Colônia. Sou parte da geração que nasceu nela, e que nunca viu o lado de fora. Vi fotos de como era o mundo antes, mas cheguei a um nível de ceticismo em que deixei de acreditar em imagens editadas e contos de fadas. O mundo é uma droga desde sempre, e estamos lidando com isso da melhor maneira possível, suponho.
Lina, minha melhor amiga, diz que não. Ela chegou à colônia há pouco mais de nove anos junto com os pais, fugindo de alguma outra instalação que havia sido invadida por eles. Ela diz que ainda há beleza no mundo, e acredita que um dia vamos conseguir vencer a guerra – se não nós, então nossos filhos. Ela diz que eles estão ficando mais fracos. Eu discordo. Estão mais fortes.
E aí, há, é claro, eles.  Monstros, eu suponho que sejam, mas monstros que os humanos, em todo o seu egoísmo, inventaram. Criaturas geneticamente modificadas, com o apetite de dez leões, a velocidade de um jaguar e a força de um elefante. Eles se reproduziram como coelhos, e em questão de meses decidiram que os seres humanos eram seu prato predileto. Estávamos sendo massacrados antes de recorrermos aos esconderijos para tentar salvar o que sobrou.
Papai diz que os monstros não lidam bem com sol e terrenos arenosos, por isso a Colônia fica no deserto. Mas outros esconderijos também contavam com a segurança da areia, e mais deles tem sido destruídos a cada ano. Estão se adaptando. Sei de coisas que deixariam a população da Colônia em pânico, mas como parte do meu trabalho, mantenho segredo de todos, até de Lina. Se ela soubesse do que eu sei, garanto, seria menos otimista.
~*~
Estou em ronda, patrulhando os muros da área norte. É fim de tarde, e minhas pernas doem após um turno de seis horas. Estou suada por baixo das roupas escuras da patrulha, mas há anos me acostumei com o calor. Ficar de pé sob o sol não me incomoda, mas ainda assim, estou cansada. Quero voltar pro alojamento, me limpar e comer.
Como se lesse meus pensamentos, Lina aparece no meu campo de visão.
– E aí, vamos comer? – convida, sempre sorridente. Lina, como eu, tem pele e cabelos escuros, embora os dela sejam mais encaracolados e menos crespos que os meus. Das duas, sou a mais alta, mas por poucos centímetros. Muita gente nos confunde por irmãs.
– Ainda não. Faltam… – checo o relógio no meu pulso – Dois minutos para o fim do meu turno.
– Meu deus, vão fazer o que, te prender se você sair mais cedo? – Lina ironiza – Seu pai é o general!
– E eu sou um soldado. – repito. Já tivemos essa conversa milhares de vezes, e mantenho meu discurso padrão – Não posso abrir precedentes só porque sou filha de um cara importante.
– Que seja. Não vai acreditar no que aconteceu hoje…
E assim, Lina começa a tagarelar sobre Hanna, uma garota que trabalha no setor médico por quem ela é apaixonada, e como ela quase se declarou desta vez. Ouço só metade e tento responder de acordo. Nunca vou entender como Lina foi escolher logo eu para ser sua amiga. Acho que ela só precisava de alguém que a ouvisse, tanto quanto eu precisava de alguém que falasse. Nenhuma de nós suporta bem o silêncio.
Quando chegamos ao refeitório, o jantar já começou a ser servido. São quatro refeições servidas em porções calculadas e em horários específicos – se você perde uma, fica sem comer até a próxima refeição, a menos que conheça as pessoas certas. O refeitório está cheio, e Lina e eu pegamos a imensa fila de pessoas que esperam pelos seus pratos.
Bandeja em mãos, nos sentamos em uma das enormes mesas metálicas, dividindo espaço com gente de todos os setores. Lina trabalha na limpeza e manutenção, apesar de ter sido treinada para trabalhar na cozinha no lugar onde vivia antes – quando novas pessoas chegam, são designadas para onde quer que haja trabalho. Ela conversa com naturalidade com pessoas cujos nomes memorizei por ser parte do meu trabalho, mas com quem nunca troquei mais de uma palavra na vida.
Queria ser como ela, e não me sentir esmagada pelo peso da vida na Colônia. Queria tocar meus dias com a mesma suavidade dela, e poder me lembrar que sou jovem, e que há mais do que apenas botar meu uniforme todos os dias e vigiar os muros. Mas eu sei demais. Vi demais. Nunca poderei recuperar minha juventude.
Enquanto todos na mesa conversam, faço o que sei fazer melhor e observo. Observo quando Caco, da engenharia, ganha meia porção a mais de comida de Ruth, a servente, e me pergunto se eles estão namorando. Vejo Adônis, um dos nossos enfermeiros, ensinando o filho Richard a comer sozinho. E percebo, mais além, quando um guarda fala com outro guarda, que escuta algo no comunicador e murmura para outro guarda. E logo, todos os meus sentidos estão em alerta.
– O que foi? – Lina me cutuca, cenho franzido.
– O que? – me viro para ela, tentando ao mesmo tempo acompanhar a movimentação da segurança.
– Você está com aquela cara. – ela estreita os olhos, e me pergunto que cara seria aquela. Lina é a única pessoa que consegue decifrar meu humor só com um olhar. A maior parte das pessoas diz que eu não tenho expressão.
– Não é nada. – minto, e volto a comer. Lina não parece convencida, mas não insiste. Melhor assim.
~*~
Meu pai disse que não há nada de errado. Ele disse isso com o mesmo tom de voz impaciente que dirige a todo o seu pessoal, vago como só ele sabe ser. Ele espera que eu acredite, mas também não me diz o que aconteceu a ponto de mobilizar tantos guardas.
Talvez não tenha sido nada, penso. Se houvesse mesmo alguma falha significativa, todos os soldados teriam sido chamados, incluindo eu. Somos treinados para isso. Não pode ser nada grave se só os seguranças do refeitório foram acionados.
Tento, mas não consigo acreditar nisso. Há algo errado, eu posso sentir.
Sei que não vou arrancar nada dele, então sigo para o dormitório. Famílias dormem juntas, e aqueles que não tem família dormem em alojamentos mistos. A pedido meu, Lina mora conosco, comigo e com meu pai. Os pais dela morreram tentando traze-la para a Colônia, e minha mãe morreu quando nasci, então temos um lugar vago. E não é como se meu pai dormisse conosco. Eu nem sei onde ele está na maior parte do tempo. Era isso ou ficar completamente sozinha.
Lina adormece rápido, como sempre, mas a mim cabe a vigília. Fico horas acordada, e quando consigo pegar no sono, é um sono leve e inquieto. Sonho com guardas e morte, e estou tão embrenhada nos meus pesadelos que, quando ouço a sirene, acredito que ainda esteja sonhando. Só me dou conta do que estou acontecendo quando Lina me chacoalha.
– Acorda! Tá acontecendo alguma coisa! – ela diz, e abro os olhos para encontra-la sentada na cama, banhada de luz vermelha.
Luz vermelha. Alerta geral.
Me levanto num salto e enfio o uniforme mais rápido do que Lina consegue sair da cama. O alarme soa alto, e quando saio do nosso cubículo, encontro várias famílias assustadas preenchendo o corredor, todas com faces preocupadas, algumas pessoas chorando.
– Todo mundo fique calmo, por favor. – saio para o corredor e levanto as mãos de forma apaziguadora – É só um teste de segurança. Por favor, permaneçam dentro dos seus quartos enquanto nós fazemos a checagem dos sistemas.
Aquilo parece acalmar alguns, que voltam para dentro, embora outros ainda me olhem de maneira desconfiada. Lina vem até mim.
– O que está acontecendo? – ela sussurra. A mentira está na ponta da língua, mas quando olho pra ela, não consigo me convencer a mentir.
– Não é um teste. – falo, bem baixinho – Olha, eu preciso ir. Fica no quarto.
– Até parece! – ela balança a cabeça como se eu tivesse dito algum absurdo – Eu vou com você.
– Você… – olho para ela e sei que não adianta discutir. Reviro os olhos – Tá, anda logo.
Disparo pelo corredor, seguindo caminhos que já decorei, com Lina em meu encalço. Os alarmes não param, o que, para qualquer pessoa mais atenta, significaria que aquilo não é um teste. Mas as pessoas, eu aprendi há muito tempo, acreditam naquilo que querem acreditar. Qualquer coisa que as dê tranquilidade está valendo.
A central de segurança fica, como bem diz o nome, no centro do complexo. É uma sala grande de onde todas as operações, câmeras e pessoal são controlados. Sei que meu pai estará lá, e sei que ele é o único que pode me dizer o que está acontecendo. Estou vendo a porta no final do corredor quando ouço um estrondo e o chão treme sob meus pés. Lina cambaleia e cai com a surpresa.
– O que foi isso? – ela pergunta, pavor claro em sua expressão e sua voz.
Uma explosão, penso eu. Próxima, pelo nível do tremor. O que diabos está acontecendo?
– Vamos, a gente precisa correr. – eu a ajudo a se levantar, e disparamos de novo.
Estamos alcançando a sala quando a porta se abre e dela saem dezenas de soldados, homens e mulheres, alguns tão visivelmente desajeitados em seus uniformes que fica claro que, assim como eu, eles acabaram de sair da cama. Eles correm para todos os lados do complexo, e Lina e eu precisamos esperar que todos saiam para enfim entrar na central.
E o que vemos lá dentro é caos.
Meu pai está gritando com o comunicador, e há pessoas desesperadas falando em todos os cantos. A tela que mostra as imagens do circuito interno revela o verdadeiro apocalipse – há pessoas fora dos dormitórios, correndo desesperadas com suas famílias, e há guardas por todos os lados. E o que imaginei ser uma explosão era algo ainda pior.
O muro. O muro está danificado! Há buracos em toda a sua extensão, e eles estão aumentando. Os estrondos possivelmente foram causados por isso. Mas o que está abrindo os buracos?
– Pai! – grito, indo até ele. Meu pai é alto como eu, mas branco, de cabelos grisalhos. Está de uniforme completo, e para de gritar com o comunicador quando me vê.
– Você não devia estar aqui. – ele diz, e parece furioso ao avistar Lina – Nenhuma de vocês.
– O que está acontecendo? – pergunto – O que eu posso fazer pra ajudar?
Ele olha para mim, e então para a tela, onde a situação em todos os cantos da Colônia está cada vez mais preocupante. Então suspira.
– Eles nos encontraram. – diz, a voz séria, pesada – Estamos sendo invadidos.
Sinto o estômago gelar e afundar enquanto ele me passa um geral da situação. Eles vieram na calada da noite, passando despercebidos até que fosse tarde demais. Tinham se organizado para tentar derrubar o muro. Há pelo menos duas dúzias deles. Há muitos mais de nós, é claro, mas os números não contaram a nosso favor há 130 anos e não vão contar agora. Já estamos mortos.
– O que posso fazer? – torno a perguntar. Lina, ao meu lado, encara o chão num silêncio pouco característico.
– Organize os civis. Leve todos para o subsolo. – instrui. Faz uma pausa, e em seguida vai até sua mesa. Pega um envelope na gaveta e o entrega para mim – Você sabe o que tem que fazer.
Pego o envelope pelas laterais, com cuidado. O papel marca o volume, mas sei mesmo sem sentir o que há dentro dele. O plano B. Nunca achei que fosse ser eu a responsável por ele.
Nos olhamos brevemente. Nenhum adeus, nenhuma palavra – somente um aceno breve de cabeça. Meu pai tem sua missão, e agora eu tenho a minha. É hora de cumpri-la.
~*~
Organizar os civis acaba se provando uma missão muito mais difícil do que o previsto. Mesmo com a ajuda de vários guardas, o pânico é generalizado demais pra que eu consiga manter a paciência. Em questão de minutos, estou gritando e ameaçando pessoas. Será que eles não entendem que vão morrer?
Ouço estrondo, tiros, e os gritos à minha volta beiram o ensurdecedor. Queria saber o que está acontecendo. Queria ajudar na proteção. Parte de mim queria morrer na linha de frente, em vez de cozinhar em banho maria como agora. Quais eram as chances reais de que alguém na Colônia sobrevivesse a um ataque dessa magnitude?
Mas olho para Lina e me lembro que, nove anos antes, ela sobreviveu. Nunca perguntei a ela como, e ela nunca quis me contar, mas suponho que, de alguma forma, seus pais tenham se sacrificado por ela. Imagino se eles tinham um plano B e se este também fracassou. Quantos teriam morrido? Quantos além de Lina tinham conseguido abrigo em outros complexos?
São perguntas demais, e opto por não pensar. Fazemos nosso caminho pelas escadas estreitas que levam ao subsolo, uma espécie de quarto do pânico que cobre toda a área da Colônia, abastecida com suprimentos para alimentar toda a nossa população atual por um mês. Lembro-me do treinamento, quando meu pai me disse que só precisávamos sobreviver por uma noite. Quando o dia chegasse, os monstros seriam afugentados pelo calor, e teríamos uma chance.
Essa era a versão oficial. A versão que meu pai havia me contado, contudo, era muito diferente.
– Há suprimentos, mas não é o bastante. Quando entrarem no complexo, é questão de tempo até que matem todos nós. Por isso, precisamos do plano B.
Plano B. Era irônico, porque não havia plano A. Nunca houve. Para todos os soldados, o plano B era a última opção. Para mim e para todos os funcionários de alto escalão, era a única saída. E agora, ela depende de mim.
O quarto do pânico é um enorme espaço vazio, com sacos de dormir arranjados em pilhas e prateleiras de suprimentos trancadas a chave. Organizamos todos no subsolo, e enquanto eu encarava minha próxima missão, Lina tentava ajudar como podia, acalmando crianças e oferecendo consolo e respostas vagas aos adultos. Ela estava fazendo um trabalho melhor em manter a calma do que eu.
O plano B inclui três passos. O primeiro deles é comunicar os outros soldados. Vou até o primeiro e murmuro o código que todos aprendíamos no treinamento, e vejo o rosto dele empalidecer. Ele assente, e repassa o código aos demais, e um a um, todos tem exatamente a mesma reação. Então sigo para o segundo passo.
No canto oposto à entrada, há uma segunda porta, quase invisível no concreto. Vou até ela. Há uma única fechadura, grande e prateada, e um teclado numérico ao lado. Respiro fundo e digito a sequência de números que eu sabia de cor desde os dez anos. Abro o envelope e retiro dele as duas chaves. A primeira, maior, eu coloco na fechadura e giro.
A porta se abre, só para eu descobrir que o corredor está impenetrável. Quilos de terra e pedras bloqueavam meu caminho, me separando do meu objetivo. E agora? Nos treinamentos, nunca fui preparada pra isso. Como ninguém havia visto que nossa única salvação estava bloqueada?
– Senhora? – um dos soldados se aproxima – Quais são as ordens, senhora?
Os olhos fixos no corredor, não respondi por um instante. Então despertei.
– Precisamos desobstruir esse corredor. – falo, alto o bastante para chamar a atenção de todos os outros soldados – Arranjem pás ou algo com que possam cavar. Precisamos abrir passagem por esse corredor imediatamente.
Uma continência e todos estão em ação. Alguns guardas saem para cumprir outras ordens, e outros ficam, me ajudando como podem na desobstrução da passagem. Mas o corredor é estreito, e há muita terra, e logo há sujeira para todos os cantos e não parecemos nem remotamente perto de conseguir o que precisamos.
Mas não há tempo. Os estrondos e os tiros e os gritos estão cada vez mais perto, e é questão de minutos até que sejamos farejados. Se nos pegarem aqui, não há para onde fugir. Vai ser um banho de sangue. Precisamos agir mais rápido.
Eu passo a cavar com as mãos, a ferocidade quebrando minhas unhas e machucando meus dedos. Não há tempo para sentir dor. Precisamos fugir. Estou hipnotizada pelo meu próprio desespero quando ouço o som claro de algo sendo arrancado, e é aí que sei que eles chegaram.
Há um segundo infinito de silêncio, onde ninguém se mexe, fala ou respira.
Então o quarto explode em gritos e rosnados e movimento. Os guardas abandonam seu trabalho para lutar com mãos e armas, mas eles não tem a menor chance. Ouço o som de ossos se quebrando e pele se rasgando, e sinto o cheiro de sangue inundando o ar. Não consigo ver Lina em meio à massa, e sei que agora não adianta gritar por ela. Em desespero, faço tudo que posso fazer e luto contra a parede de terra com mais e mais afinco.

Garras me envolvem pelo tronco e me puxam. Eu grito enquanto sou arrastada sala adentro, e sinto minha pele ser dilacerada. A dor é tanta que paro de sentir, e a consciência começa a me escapar. Olho para o lado e encontro o rosto de Lina, ensanguentado e inexpressivo, os olhos vítreos de morte. É a última coisa que vejo antes de fechar os olhos.

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