Para Ana, Com Amor – primeiro capítulo

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LEIA O PRIMEIRO CAPÍTULO NA ÍNTEGRA:

Querida Ana,
Eu não posso mais escrever para você. Na verdade, sequer deveria estar escrevendo agora. Todos me disseram que devo me afastar de você, e é isso o que estou fazendo — ou que estou tentando fazer.
A verdade, Ana, é que sinto sua falta. Todos os dias, me lembro das coisas boas que a nossa amizade me trouxe. Todos os dias, me lembro de como me sentia bem com você. Todos os dias, me pergunto por que estão nos afastando.
Ana. Ah, querida Ana. Estou com saudades.
Com amor,
Duda,

289 dias
Eu sou forte
Eu sou magra
Eu estou doente
Hoje, meu psicólogo me mandou escrever três verdades sobre mim que preciso aceitar.
Escrevi o que imaginei que ele quisesse ler. É o que se espera.
Não acredito nelas nem por um segundo.
283 dias
Café da manhã:
Dois copos d’água
Duas torradas com requeijão
Meia laranja
Não posso anotar o que como. Não é assim que fazem as Meninas Saudáveis, como mamãe gosta de chamá-las. E eu quero ser uma Menina Saudável, não quero?
Quero?
Estou no meu quarto, me arrumando para o primeiro dia de aula na faculdade. Queria dizer que estou pronta, mas não estou. O espelho da penteadeira exibe meu rosto imenso, as espinhas e olheiras e sardas e cravos e distorções que não consigo consertar. Os vitrais que enfeitam a parede me deixam quatro, seis, doze, vinte vezes mais gorda. 
Sou 
patética.
— Filha? Já está pronta?
Mamãe abre a porta de mansinho e põe a cabeça para dentro do quarto. Tomo um susto, mas me recupero rápido, na esperança de que ela não note o quanto estou nervosa. Logo percebo que é tolice — mais do que sentir meu nervosismo, mamãe está apavorada por mim.
— Estou — digo, e pego a bolsa que deixei sobre a cama, já arrumada com tudo que julgo que poderei precisar no primeiro dia de aula: caderno; estojo; carteira; uma dose de coragem.
— Tem certeza de que quer fazer isso? — Mamãe abre mais a porta e se encosta no batente, encarando-me com preocupação. — Não seria melhor esperar mais um semestre? Você ainda está se… — ela faz uma pausa e eu perco a respiração. — Ajustando.
Ajustando. Recuperando. Curando.
Meus lábios tremem e, novamente, eu penso nisso por um instante. Poderia simplesmente deixar passar aquele semestre, enrolar-me nos cobertores e ficar em casa. Não sei se estou pronta para os olhares, para os questionamentos, para as tentações.
Mas então imagino um semestre inteiro com mamãe em casa, saindo só para as visitas semanais ao terapeuta e quinzenais ao médico. Isso não é vida. Respiro fundo. Sou uma Garota Forte, e Garotas Fortes não perdem o primeiro dia de aula. Garotas Fortes dão a volta por cima. 
Sou forte. Sou magra. Estou doente.
— Eu estou pronta. — Pego a bolsa e saio.
Garotas Fortes não têm medo de nada.
— Quer uma bala? — mamãe me oferece o pacote, azul como uma tentação gelada, doce e perigosa.
Perigosa. Muito perigosa. Um docinho tão pequeno poderia conter facilmente entre 15 e 20 calorias. Meu estômago se contorce. As balas, de repente, parecem pequenas larvas, nojentas, capazes de me infectar a um só toque.
— Já escovei os dentes — digo, com um sorriso educado, quase tão convincente quanto o que mamãe me dirige com a recusa. Ela guarda o pacote e põe ambas as mãos no volante.
— E então, pronta pro primeiro dia de aula? — me pergunta, olhando de soslaio. Olho para ela, analisando — por um segundo — antes de responder. Somos muito parecidas. Mamãe tem braços gordos e bochechas enormes, quadril largo, barriga marcando a cintura, pescoço grande. 
Como eu.
— Acho que sim — digo, porque é verdade. Ou talvez seja, se eu repetir vezes o bastante. Não é assim que mantras funcionam?
— Vai ser ótimo — mamãe garante, mais para si própria do que para mim, acredito — Mas toma cuidado com o trote, hein, filha? Se pegarem pesado…
— Eu te ligo — completo, mecanicamente, as palavras vazias de significado. Como quase tudo nesses dias.
Ela para na frente do enorme campus. Penso se sou grande o bastante para caber ali, para preenchê-lo inteiro. Estou descendo do carro quando ela segura minha mão e sussurra.
— Seja forte.
Eu serei, mamãe. Hoje, eu serei.
Atravesso os portões e me deparo com um prédio enorme. Garotas e garotos passam por mim conversando, rindo, vivendo. Ninguém fala , olha ou sorri para mim. 
Aqui não sou ninguém. Aqui posso ser quem eu quiser.
Num imenso mural, encontro a grade horária para o primeiro semestre de Moda. A primeira aula é história da moda, seguida de sociologia. Uma ótima segunda-feira. Saio à procura da primeira sala.
Passo por um corredor de pessoas famintas. Elas se seguram aos seus pães e sucos e cafés e sanduíches como eu me seguro à minha vida. Ouço suas mastigações; um som rítmico que me persegue enquanto ando: alto, mais alto ainda. Mal consigo ouvir meus pensamentos e tento me concentrar em outra coisa. Meus passos. Minha respiração. 
Esse cheiro de comida. 
Meu corpo colidindo com o de outra pessoa, sólido como uma parede.
— Opa! — ele diz, virando-se para mim. — Tudo bem aí?
Ele é bonito, mas pálido demais. Alto, de braços longos e esguios, que me fazem sentir pequena e inchada. Tem olhos castanhos gentis e uma pequena pinta na bochecha esquerda. Me dou conta de sua mão segurando meu cotovelo, como se para garantir que eu não caia, e ele imediatamente me solta. Quanto tempo leva isso? 30 segundos? Menos? É o máximo que alguém já me tocou em meses.
— Tudo bem — digo, lutando para manter a voz firme e a cabeça erguida. Antigamente eu era uma força a ser combatida, mas basta que alguém te diga que você está doente e você se sentirá doente.
— Certo. — Ele parece se tranquilizar, e sorri, um sorriso leve que traz certo brilho aos seus olhos — É nova aqui, bichete? Precisa de ajuda?
Não preciso de ajuda. Estou bem. Estou ótima. Parem de achar que estou quebrada, que não posso fazer nada sozinha, que não sou confiável, que vou estragar tudo, que preciso de alguém. Sou Forte. Não preciso de ninguém.
Mas mamãe quer que eu seja uma Menina Saudável, e Meninas Saudáveis aceitam ajuda.
— Preciso — digo, lentamente. — Sabe onde fica a sala 163?
— Eu te levo até lá — oferece, já começando a andar e fazendo sinal para que eu o acompanhe.
Sigo-o pelos corredores ainda confusos da faculdade, já não sabendo de onde vim ou para que lado é a saída. Acompanhada é mais fácil me distrair do entorno e me pego contando passos enquanto seguimos. Um, dois, dez, quinze. Ele tem pernas longas, e cada passo seu equivale a dois meus. Logo estou correndo para acompanhá-lo.
— Então, moda, certo? — ele fala, de repente, me interrompendo no número 18 —Você faz o tipo.
— Que tipo? — pergunto, franzindo o cenho.
— Sabe como é. “Queria ser modelo, não deu, então resolvi fazer moda”. — diz, a voz tinindo de sarcasmo.
Bile me sobe à garganta. Ele não sabe, não tem como saber. Mas talvez todo mundo veja, só de olhar para mim, que nunca tive chance. Sou grande demais, desajeitada demais, imperfeita demais. Não sou ela. Quem olharia para mim e desejaria ser quem eu sou?
— E você tem cara de menininho mimado que está na faculdade que o papai escolheu só pra entrar na empresa da família e nunca ter que fazer nada por si próprio. Acertei? — disparo, rebatendo todas as minhas ansiedades num único comentário mordaz.
— Wow, calma aí, bichete! — Ele ergue as mãos e arregala os olhos, nenhum vestígio de raiva presente — Era só brincadeira, ok? Eu faço essa piada com a minha namorada o tempo todo. Ela também cursa moda.
Não respondo, mas me pego imaginando como poderá ser a tal namorada. Alta, imagino. Perfeita. Magérrima. Normal. Saudável. Não a conheço, mas já a odeio. Ela parece detestável.
Ele não fala mais, e decido que o odeio também. Por estar no meu caminho, por me oferecer ajuda, por me julgar sem saber nada a meu respeito. Ele é grosseiro e ridículo e, se disser “bichete” mais uma vez, vou arrancar aquela pinta idiota do rosto dele usando minhas próprias mãos.
— Está entregue — fala, por fim, e me deparo com a porta da sala 163. O caminho até ali parece ter levado uma vida toda.
Não agradeço. Quero que ele vá embora, me deixe sozinha. Eu poderia ter encontrado essa sala estúpida sozinha. Não preciso de ajuda, e certamente não preciso da piedade dele.
— E a propósito… — Ele aponta o indicador direito na minha direção, e não sei decifrar sua expressão. — Meu pai é funcionário público. Eu faço comunicação visual. Não tem absolutamente nada me esperando quando eu me formar.
Ele sorri uma última vez e vai embora. Observo-o partir, o rosto ardendo, desejando poder voltar para a cama e nunca mais sair de lá.
A aula dura menos de quarenta minutos. Ela passa rápido, e quando dou por mim, saio da apresentação de nome-idade-qual-seu-estilista-favorito direto para o trote.
Não achei que o curso de Moda passasse por um ritual tão primitivo e desnecessário quanto o trote, mas estava claramente enganada. Quando deixo a sala, já há um grupo de veteranas à nossa espera, armadas de tintas e canetas coloridas. Estremeço só de pensar naquilo me cobrindo e busco uma rota de fuga, mas uma delas me cerca.
— Opa, o que temos aqui? — diz, com um sorriso levado no rosto e uma caneta ameaçadora na mão. Ela estreita os olhos para mim — Tá com medo, bichete?
— Não — minto. Estou apavorada. Quero fugir, correr, desaparecer, sumir, evaporar. Mas não me mexo. 
Sou forte.
— Certo. — De algum modo, sei que ela sabe que estou mentindo. — Você vem comigo — completa, com um breve aceno.
— Não vou, não — digo, firme e indignada.
— Prefere ficar com elas? — pergunta, indicando as amigas com a cabeça. Elas já se embrenharam na missão de cobrir minhas colegas com tinta, permitindo-me passar quase despercebida. Se eu sair agora, posso me perder dessa fulana na multidão. Posso ir para casa. Tomo minha decisão e a acompanho.
Seguimos até o lado externo do campus, uma área bonita, ladeada de árvores e bancos, que leva até o estacionamento. É também a menos de cem metros de uma lanchonete, e o cheiro de fritura me deixa nauseada. A nuvem de gordura parece uma força física se aproximando, envolvendo-me e me cegando.
— Quer um? — pisco, e vejo um maço de cigarros estendido na minha direção.
— Não fumo. — Balanço a cabeça. Ela assente e puxa um cigarro para si.
— Você diz isso agora. —  Acende um com um isqueiro cor-de-rosa. O aroma da nicotina é quase refrescante.
Observo-a fumar. Ela é loura como eu, mas seus cabelos são ondulados e cheios de vida, arrumados numa bagunça calculada. Tem grandes olhos azuis cristalinos e uma boca farta e bem desenhada. Seu corpo é perfeito e dela emana uma aura hipnotizante.
Eu a odeio. 
Quero ser ela.
— Qual o seu nome? — pergunta. Seu sotaque é cantado. Combina.
— Duda. Maria Eduarda. — respondo — Você?
— Kátia. Só Kátia. — Ela traga mais uma vez e me estuda enquanto exala — Então, de que exatamente você tava com medo?
— Não tava com medo de nada — digo, decidida e rápido demais.
— Claro. — Ela ri, e algo em seu sarcasmo me faz odiá-la e desejá-la ainda mais — Mas eu te entendo. Eu também não queria participar do trote no meu primeiro ano. Mas diferente de você, eu não tive ninguém pra me ajudar.
— Não pedi sua ajuda — rebato. Kátia ri de mim.
— Você é uma tremenda de uma má agradecida! — Ela joga a bituca no chão e pisa em cima, apontando um dedo pra mim. — Sorte sua que eu gostei de você. Vamos.
— Pra onde?
— Pro primeiro dia do resto da sua vida.
Uma colher de arroz.
Uma colher de feijão.
Um tomate picado.
Uma fatia gigantesca de peito de frango.
Meu almoço me espera, e mamãe está ansiosa. Ela finge estar ocupada com a própria comida, mas sinto seu olhar recair sobre meu prato de vez em quando. Se pudesse, me obrigaria.
“Coma, Duda”, ouço sua voz dizendo em minha cabeça. “Você precisa comer. Não quer ser uma Menina Saudável? É só abrir a boca e comer.”
Não quero ser Saudável. Meninas Saudáveis são porcas rosadas, roliças, imensas e descontroladas. Meninas Saudáveis fazem o que mandam que façam. Por que querem me transformar num experimento? Abra a boca, Duda. Coma, Duda. Não reclame, Duda. Coma, fique cheia e entre na fila do abate.
Passo o garfo pelo prato, recolhendo a menor quantia possível de comida. Minhas mãos tremem. Não posso. Não quero. Não devo. Ainda não esqueci a laranja da manhã. Não posso carregar isso comigo.
Recuo o garfo e respiro fundo. Olhar para aquela comida me dá uma mescla de enjoo e vontade de chorar. Não seria capaz de comer mesmo que quisesse. Duvido que um único grão de arroz seja capaz de ultrapassar o bolo que se formou na minha garganta.
Mamãe me olha em expectativa. Ela não sairá dali enquanto eu não comer, e eu não poderei sair se não o fizer. Sou uma garotinha de seis anos de novo, fazendo manha e temendo a reação da mãe.
Tento de novo. Recolho migalhas no garfo. Só preciso respirar fundo. Prender o ar. Se eu não sentir o gosto, talvez não seja tão ruim. Se eu não sentir o gosto, posso fingir que não haverá consequências.
Abro a boca. Enfio a comida lá dentro. Tem gosto de papel banhado em lama e salpicado com grãos de areia. 
Mastigo uma vez; gorda. 
Duas; balofa. 
Três; baleia. 
Quatro; porca. 
Cinco; elefanta.
— Como foi seu primeiro dia? — mamãe me pergunta, visivelmente aliviada. Seu alívio me corrói. Como ela pode ser feliz me condenando deste jeito? Ela não percebe? Que tipo de mãe ela é pra me sujeitar a esse sofrimento?
— Foi ok. — respondo, porque é isso que se espera. E assim como o esperado, mamãe sorri pra mim.
— Que bom.— ela dá mais uma garfada. Me forço a engolir a primeira. A comida desce gritando — Fez algum amigo novo?
Penso em Kátia e no garoto sem nome.
— Não. — digo. Mamãe ameaça tocar minha mão, mas desiste antes de me alcançar.
— É só o primeiro dia — diz e continua a comer.
Sim. Só o primeiro numa sequência de dias piores. 
O primeiro do resto da minha vida.
“Como você está? Como você se sente? Você melhorou?”
São perguntas que eu ouço o tempo todo, de todos os lados. As pessoas olham para mim e veem uma doente. Eu não estou doente; para elas, eu sou a doença. Uma massa gigantesca de problemas que ninguém consegue resolver. Por isso eles perguntam. Ninguém quer realmente saber a resposta, mas  se sentem melhor perguntando.
— Eu tô bem — respondo para a visita da vez. Tia Clarissa é dessas parentes que só aparecem em momentos de crise, urubus circulando a carniça. Minha família não é muito grande, então imagino que eu seja o mais próximo de uma fofoca que ela consegue chegar.
— Que bom. Você parece tão magrinha. — no auge dos seus setenta anos, ela é cega, a tia Clarissa. Bem cega. Seus óculos gigantescos parecem lupas sobre seus olhos castanhos. Parecem embaçados. Deve ser mais cega do que eu imaginava — Eu trouxe uma coisinha para você.
— Não precisava — digo, porque é o que se espera; mas também porque consigo imaginar que coisinha será essa e não quero, não posso, não devo, não vou aceitar.
— Claro que precisava! Sua mãe já vai trazer. — Ela olha para o lado, e vê mamãe chegando da cozinha. — Ah, aí está.
O cheiro é o que me atinge primeiro, me sufocando com seu aroma doce nauseante. Há açúcar no ar e eu engasgo, desesperada para me livrar dele. E então olho e lá está, uma enorme fatia quadrada, o bolo de fubá. Uma bomba atômica. Um veneno. Uma tentação.
— Gostou da surpresa? — tia Clarissa me pergunta, mas mal a ouço falar, a cabeça ocupada com um plano de fuga. — Era o seu preferido quando você era menina.
Sim, quando eu era menina e inocente, e me permitia doces e guloseimas e balas e bolos de fubá cobertos de açúcar. Antes de eu me tornar essa bomba relógio que pode explodir gordura a qualquer instante, antes que eu olhasse no espelho e visse a porca gorda que  havia me tornado.
Mamãe coloca o prato diante de mim. Evito olhar para ele; prefiro encarar mamãe e esperar que ela me olhe e me veja, por favor, apenas me veja. Mas ela olha e não enxerga, e se enxerga, não vê, e já sei quais serão suas próximas palavras antes mesmo que ela fale.
— Não vai fazer desfeita com a sua tia, né? Ela fez com tanto carinho… — Passa a mão em meus cabelos e beija meu rosto, e só para mim, acrescenta. — Por favor.
Não me peça. Não posso fazer isso. Não quero. Não me force. Como você ousa?
Mas sei o que ela está pensando. Meninas Saudáveis comeriam o bolo. Você não quer ser uma Menina Saudável?
Passo o garfo pelo bolo, macio como terra. Minhas mãos tremem enquanto equilibro o talher a caminho da boca. NÃO. NÃO. NÃO. Maldita, cruel, vil, e tudo que fiz por você? Afaste a droga do garfo. Ainda dá tempo. Saia. Diga que não. Fuja.
Enfio o pedaço de tijolo na boca e mastigo. Como tentar comer massa corrida, ele engrossa e se transforma numa bola impalatável. Um guardanapo, preciso de um guardanapo! Mas mamãe é esperta e já conhece os meus truques, e não há escapatória. Ela e tia Clarissa me encaram em expectativa. Então engulo aquela bola de pedras, aquele monte de terra e argamassa e sinto a garganta travar, de dor e de nojo. 
Imunda. 
Hipócrita. 
Traidora.
Mesmo assim, sorrio. Não digo nada. Ninguém repara. Como sempre, sou o que menos importa.
Entro no banheiro. Fecho a porta. A chave desapareceu meses atrás; “somos só nós duas”, ela argumentou. “Não precisa de chave”. Como se eu não soubesse.
Apoio as costas na porta, e minhas pernas tremem. Sento no chão e cubro a boca com as mãos. Está aqui, ainda na minha garganta. Esperando pra sair.
Por que, por que, por que, por que, por que, por que, por que, por que, por que, por que, por que, por que, por que, por que, por que, por que, por que, por que, por que, por que, por que, por que, por que, por que, POR QUÊ?
Engatinho até o vaso, a visão embaçada. Minhas mãos abrem a tampa com carinho. Não preciso de muito — nunca precisei. Um empurrãozinho basta. Um toque, por mais delicado que seja, e tudo acaba. Não seria incrível, com um só toque me livrar de toda essa sujeira, essa gordura, essa dor, essa culpa? Somos só nós duas de novo, as duas Garotas Fortes. Ela aguentando o peso das minhas maldades; eu, suportando a vida.
Abro a boca. Se eu me esforçar, aposto que consigo buscar com as mãos os meus erros; eles estão logo ali, entalados, posso sentir. Não deveria antes, mas devo agora. Eu conheço as regras. É o preço a se pagar. Fui má e mereço. Isso não é nada. Eu deveria me amarrar em arame farpado. Eu merecia dez, não, vinte horas de jejum por aquele pedaço de pedra. Limpar minha bagunça é um preço pequeno. É o mínimo que eu posso fazer.
— Duda? — ouço-a chamando. A viagem para se despedir de tia Clarissa no portão do prédio foi curta demais — Filha, cadê você?
É agora. Tem que ser agora. Ponho os dedos e puxo.
É lindo e doloroso como um nascimento. Arde, a princípio, mas com o ardor vem a pureza. Estou limpa. Estou livre. A tentação se foi e os problemas se foram. É minha vida de novo. Meu corpo.
— Duda! — mamãe grita, e se abaixa ao meu lado, segurando minhas mãos. Luto para me soltar; há mais de onde este veio, dias e dias de pequenos pecados, e eu preciso, devo, quero me redimir.
Outras ondas vêm, e ela segura meus cabelos enquanto me lavo de dentro pra fora. Quando termina, me sinto ao mesmo tempo vazia e completa , um êxtase que se estilhaça ao encontrar os olhos marejados de mamãe.
— Por que você fez isso? — ela pergunta, fungando. Abaixo a tampa do vaso e pressiono a descarga antes de levantar, cambaleando de alegria.
— Você me fez fazer isso — replico e saio do banheiro.

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