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Era uma vez,
Num sonho
Inspirado na história de “A Bela Adormecida”
Capítulo 1
―Rosa.
Eu estava deitada em uma toalha de piquenique, rodeada por um bosque, sentindo o sol no meu rosto. Ao meu lado, estava ele ― o garoto dos meus sonhos, sorrindo e cantando para mim, a melodia suave dando tom à cena. Meu nome era um eco distante, perdido na música suave que embalava o meu sonho. Uma voz perdida, que de alguma forma parecia se integrar na melodia, morrendo entre as notas.
―Rosa, acorda.
Houve um tremor e as imagens se dissolveram em um instante, a música parando para dar lugar à voz, cada vez mais próxima. Era familiar, mas não conseguia me lembrar exatamente de onde.
― Rosa! Você vai se atrasar!
Acordei lentamente, os olhos ainda pesados de sono. Passei uma mão no rosto e soltei um bocejo alto. Que horas seriam?
― Rosa! ― alguém gritou no meu ouvido. ― Levante! Você vai se atrasar!
Abri os olhos e dei de cara com tia Margarida com as mãos na cintura e o cabelo grisalho coberto com um lenço branco impecável. Ela queria parecer severa, com a pose e o cenho franzido, mas eu sabia que era só encenação para me fazer acordar. ― Todo dia era a mesma coisa.
― Bom dia. ― grunhi e dei mais um bocejo. Levantar era tãodifícil!
― O ônibus passa daqui a meia hora e você ainda nem tomou café! ― Ela se desesperou e começou a me puxar da cama. ― Vamos, levante.
A contragosto, pulei da cama. Enquanto ia em direção ao banheiro, minha tia corria atrás de mim com o uniforme, balbuciando o quanto a minha preguiça ainda iria me meter em problemas.
Escovei os dentes e me meti no uniforme cantarolando a música do sonho, que se repetia interminavelmente na minha cabeça. A porcaria da calça já estava arrebentando entre as minhas pernas de novo ― as vantagens de ter coxas roliças. Escovei meus cabelos louros, que já estavam implorando por um corte, e meti os óculos na cara antes de sair do banheiro, ou meus quase três graus de miopia não me deixariam chegar muito longe.
Tia Margarida já estava na cozinha quando cheguei. Empacotava o meu lanche, colocando-o sem cerimônia na mochila. O café já estava na mesa, como em todas as manhãs, enchendo a cozinha de cheiros, indo desde o aroma forte do café até o mais sutil, do pão fresquinho. Não eram nem sete horas e a casa já estava quente por causa do forno ligado, trabalhando sem parar.
― Bom dia, tia Hortênsia ― falei, quando avistei minha outra tia passando pela janela da cozinha.
― Bom dia! ― ela acenou, distraidamente, indo realizar alguma de suas tarefas matinais enquanto cantarolava baixinho. Tia Hortênsia era ainda mais alta que tia Margarida e magra como um bambu. Tinha o rosto fino, com queixo e nariz proeminentes, e o cabelo claro como o meu, só que cortado bem curtinho. Vivia no mundo da lua, falando mais com sua horta do que com as próprias irmãs.
― Bom dia, tia Camélia. ― Cumprimentei então minha terceira tia, a mais nova, que estava com a barriga no fogão esquentando o leite.
― Bom dia, Rosinha. ― Ela sorriu e desligou o fogo, trazendo a caneca pra mesa. Tia Camélia era a mais parecida comigo, em tamanho e largura, com seu rosto redondo e aparência atarracada. Como estava sempre cozinhando, o cabelo escuro ficava o dia todo preso num coque alto, para não atrapalhar.
― Rosa, anda logo, você vai perder o ônibus. ― Tia Margarida me apressou, batendo as mãos.
― Deixa a menina comer, Margarida! ― Tia Camélia ralhou, parecendo ter tomado a pressa como uma ofensa pessoal à sua culinária. ― Olha como ela está magrinha! Precisa de comida pra ficar forte!
Ri, mesmo sabendo que estava longe de estar magrinha ― se é que o GG das minhas roupas e a silhueta cheinha eram alguma indicação. Mas para as minhas tias, ser saudável significava comer bem, e mesmo tia Hortênsia ou tia Margarida, que eram mais magrinhas, eram boas de garfo. Caramba, acho que qualquer modelo de passarela perderia facilmente o emprego vivendo naquela casa; tia Camélia cozinhava o dia todo, tanto para vender quanto para nos empanturrar. Ela tinha verdadeira paixão pela cozinha e amava ver todo mundo satisfeito. E eu estava mais do que feliz em deixa-la contente.
Comi o mais rápido que pude com tia Margarida em meu encalço e então peguei minha mochila, me apressando porta afora. Ela insistia em andar comigo até a porteira para me ver subindo no ônibus escolar, como se, aos quinze anos, eu fosse me perder nesse curto caminho.
Fazia uma manhã bonita, dessas que só a primavera tem. Nossa propriedade não era das maiores, mas havia uma horta nos fundos e um pasto razoável para Tatá, nossa vaca, comer de sobra. Tínhamos um carro velho, mas minhas tias não gostavam de dirigir e só o faziam quando não havia outra opção. Era aconchegante e gostoso, mas ficava no meio do nada, na área mais rural de uma pequena cidade do interior. Eu sonhava com a cidade grande, mas parecia um sonho distante ― eu duvidava que algum dia fosse conseguir sair daquele fim de mundo.
Avistei o ônibus chegando antes mesmo de alcançar o portão, e só consegui gritar um tchau para minha tia antes de correr atrás dele. Ele parou levantando poeira na estrada de terra para me deixar subir, e então seguiu seu caminho sacolejando.
Lá vamos nós para mais um dia.
***
A primeira coisa que fiz quando cheguei na escola foi puxar o celular de dentro da mochila. Como o colégio ficava mais para o centro da cidade, dali era possível acessar a internet, coisa que era impraticável da minha casa, tanto pela falta de sinal como pelo fato de que, tecnicamente, eu não tinha um celular. Minhas tias tinham vetado desde cedo meu acesso à tecnologia e, exceto pelos eletrodomésticos, nossa casa vivia na idade da pedra. Nada de computador nem de celular para mim. Televisão só na hora da novela. Se não fosse por Letícia, eu nunca saberia o que era internet.
― Ah, aí está você! ― Foi só pensar e ela apareceu. Letícia era minha melhor amiga, além de ser a melhor pessoa do planeta. Era pelo menos uns dez centímetros mais alta que eu, uns dez quilos mais gorda e tinha cabelos cacheados escuros com um volume maravilhoso. Ela tinha me arranjado um celular antigo seu no começo do ano, e praticamente salvado a minha vida ― Estava te procurando!
― Acabei de chegar. ― A cumprimentei com um beijo no rosto.
― E aí, você vai lá pra casa hoje? ― perguntou, enquanto andávamos juntas pelo pátio, em direção às salas de aula.
― Ai, esqueci de avisar as minhas tias! ― Bati a mão na testa, frustrada. Como eu podia ter esquecido?
― Você liga de casa, ué ― Letícia sugeriu, como se fosse a coisa mais simples do mundo.
― Ai, Lê, até parece que você não conhece as minhas tias ― resmunguei, revirando os olhos. ― Se eu pensar em não voltar direto pra casa, elas aparecem em bando pra me buscar.
― Que exagero… ― ela começou a dizer, mas abandonou a fala pela metade. Letícia conhecia minha família há tempo o suficiente para saber que era inútil. Chegamos à nossa sala e nos sentamos nos lugares de sempre, eu na primeira carteira e ela logo atrás ― Bom, amanhã, então? Você ainda não postou o vídeo desta semana.
― Nem sei o que postar, para ser sincera ― confessei, me inclinando sobre a mesa. Letícia e eu tínhamos um canal no YouTube; bom, mais eu do que ela, na verdade. Tinha sido ideia dela, porque ela sabia o quanto eu gostava de cantar e queria que eu mostrasse meu talento para o mundo. Minha única condição era que eu não mostrasse o rosto nem revelasse meu nome; não por vergonha, mas porque sabia que assim seria mais difícil das minhas tias descobrirem. Elas viviam na idade da pedra, mas as fofocas viajavam rápido numa cidade daquele tamanho. Eu não podia arriscar.
― Eu tenho algumas sugestões… ― Letícia começou a dizer, mas fomos interrompidas pelo sinal. Ia ter que ficar pra uma outra hora.
***
Voltei direto para casa depois da aula, e tia Margarida estava me esperando no portão, como sempre. De lá da rua eu conseguia sentir o perfume do almoço ficando pronto, me deixando com água na boca. Fui seguindo o cheiro portão adentro, como se eu estivesse em um desenho animado e o aroma me carregasse. Logo que entrei, fui averiguar as panelas. Arroz, feijão e carne cozida com legumes. Delícia!
― Não atrapalhe a magia! ― tia Camélia disse, quando me viu perto das panelas. Era seu código para “saia de perto do fogão”. Ela não gostava de ninguém no caminho enquanto cozinhava. ―Vai chamar sua tia.
Suspirei e saí pela porta da cozinha, dando a volta na casa até chegar à horta. Tia Hortência passava muitas horas ali, cuidando das verduras e até conversando com elas. Ela dizia que falar com as plantas as ajudava a crescer mais rápido. Então tá.
― Tia, o almoço está pronto ― chamei. Como previsto, ela estava falando sozinha enquanto arrancava ervas daninhas de sua plantação, e ergueu o rosto quando me ouviu.
―Ah. Claro ― disse, distraidamente, e continuou seu trabalho.
Entrei e deixei minha mochila no quarto. Então fui até a sala, onde tia Margarida estava sentada à máquina de costura, finalizando um remendo. Além dos doces, pães e queijos que tia Camélia fazia para vender, tia Margarida prestava serviços de costureira. Não tinha uma super clientela, mas devia bastar, porque nunca passamos necessidade.
Nos juntamos à mesa e começamos a comer. Como tudo que tia Camélia fazia, estava delicioso. Lá pelo meio da refeição, resolvi que era hora de perguntar. Pigarreei.
― Está bem? Engasgou com alguma coisa? ― Tia Margarida me olhou, preocupada. O desespero excessivo dela era meio chato às vezes; parecia que eu era uma boneca de porcelana, prestes a quebrar a qualquer ventinho mais forte.
― Não, não. ― apressei-me a dizer, e senti as bochechas corarem de nervoso. ― Hm, na verdade eu queria pedir uma coisa.
―Sim? ― Ela arqueou uma sobrancelha e esperou, enquanto dava uma garfada.
―Tudo bem se eu for até a casa da Letícia amanhã depois da aula? ― pedi, e ao ver a testa dela franzir, completei. ― Estudar. Temos prova de história essa semana.
― E como é que você vai voltar pra casa depois? ― perguntou, me olhando seriamente.
― Eu posso dormir lá ― sugeri, mas ficou claro pela sua expressão que aquilo não era uma opção. Revirei os olhos e apertei os punhos, começando a me irritar. ― Ou o pai dela me traz de noite. Eu tenho certeza que ele não vai reclamar.
― Sei não, Rosa…
― Ah, tia, até quando tem que ser assim? ―Larguei os talheres com força sobre o prato, fazendo tia Hortênsia dar um pulinho de susto na cadeira. ―Toda vez que eu quero fazer uma coisinha diferente que seja, é a mesma história. É sempre de casa pra escola e da escola pra casa. A gente mora num fim de mundo, e nem esse fim de mundo eu consigo conhecer.
― Rosa, eu faço isso…
― Pro meu bem, sei ― completei, cruzando os braços e sentindo os olhos arderem de lágrimas. Eu odiava aquela desculpa ainda mais do que odiava a maneira infantil como elas me tratavam ―,mas semana que vem eu já faço dezesseis anos, tia. Até quando você vai me tratar como criança, todas vocês?
Devo ter tocado em algum ponto sensível, porque foi como se elas subitamente parassem de respirar. Tia Margarida me olhou fixamente, o semblante muito sério, mas não parecia olhar para mim exatamente – era como se lembrasse de outra coisa enquanto me olhava. Tia Camélia fingiu prestar muita atenção ao próprio prato, incapaz de encarar alguém, e tia Hortênsia baixou os olhos, respirando profundamente. Foi só após um minuto muito longo de silêncio que tia Hortência resolveu falar.
― A Rosinha tem razão, Margarida ― falou, calmamente. Ela sorria, mas havia um pesar estranho em sua voz. ― Ela já vai fazer dezesseis anos. Deixe-a ir.
Mais um daqueles longos olhares, e a tristeza que senti na voz de tia Hortênsia pareceu se alastrar por toda a mesa. Estava quase perguntando por que tanto drama, quando tia Margarida enfim assentiu.
― Tudo bem. Mas quero você em casa antes de escurecer ― falou, e eu sorri agradecida, já esquecendo o climão de poucos segundos atrás. Então voltei a comer, mentalmente listando as músicas que poderia gravar para o canal.
***
Passei o dia fazendo minhas lições e depois ajudando nas tarefas de casa. Quando fui deitar, ainda não tinha tirado da cabeça as expressões tristes das minhas tias e o silêncio que havia se instalado na mesa, mesmo que elas tivessem feito o possível para fingir que não havia nada de errado.
Não era a primeira vez. Era costumeiro eu pegá-las me olhando com um ar cabisbaixo e, vez ou outra, tinha certeza de que cochichavam sobre mim.
E além disso, haviam as restrições. Nada de acesso à internet, nada de sair aos fins de semana ― ou durante a semana inteira, na verdade. Nada de estudar na casa de amigos, nada de receber visitas em casa. Só não dizia que vivia em cárcere privado porque, por algum milagre, ainda podia ir à escola. E qualquer mudança de rotina, como hoje, era encarada como algum tipo de crime contra a família.
Eu me perguntava se seria diferente caso meus pais tivessem me criado. Eu não sabia muita coisa sobre eles. Uma vez, durante uma apresentação de dia das mães na escola quando eu era criança, gritei com Tia Hortênsia por ser a única garota sem mãe. Ela me abraçou e, tentando não chorar, disse que meus pais estariam ali, se pudessem. Tive certeza absoluta naquele instante que meus pais haviam morrido.
Essa foi a primeira e última vez em que algo de mais concreto foi dito sobre eles. Por mais que eu gritasse, implorasse, chorasse e desse escândalo, minhas tias eram sempre vagas quando o assunto era meus pais. Passei os primeiros anos da adolescência tentando angariar informações sobre eles, tentando descobrir quem eu era, mas tudo que consegui foi um enorme vazio, impossível de preencher. Dos limites que minhas tias me impunham, o único que eu não conseguia perdoar era aquele. Me feria mais do que qualquer outro.
Cresci construindo uma mitologia em torno dos meus pais. Minha preferida era a versão em que meu pai era um grande músico e minha mãe era sua fã mais dedicada. Eles se apaixonaram num show, e eu nasci pouco tempo depois. Eles teriam morrido em algum acidente de carro e fui parar nos braços dos parentes mais próximos, as tias devotas de mamãe. Era uma boa história. Eu gostava de repeti-la para todo mundo que me perguntasse, mesmo sem saber se era real. Era melhor que admitir que não sabia.
Eu ia para a cama cedo, então antes mesmo das dez da noite, já estava deitada e sonolenta. Peguei no sono quase de imediato – e então o sonho veio.
Era o mesmo toda noite. Eu estava em um tipo de bosque ou clareira, com um lago no centro, estava sentada sobre uma toalha de piquenique com várias comidas gostosas, do tipo que certamente tia Camélia teria cozinhado. Fazia um sol gostoso, do tipo que vem em combo com o céu azul e passarinhos cantando.
Era aí que ele chegava.
Eu não conseguia ver seu rosto ― sabe quando a gente sonha como se fosse filme, e vê tudo de fora? ―, mas, sabia que ele era lindo. Era alto e tinha cabelos tão escuros que eram quase pretos, muito bagunçados. Ele não era nem gordo, nem sarado, nem magricelo; estava num saudável meio termo, com braços definidos e uma leve barriguinha aparecendo sob a camiseta. Ele se sentava comigo, e um violão aparecia do nada, como acontece nos sonhos.
E então nós cantávamos. Simples assim.
Era uma canção sem palavras, ou pelo menos sem nenhuma que eu conseguisse me lembrar, mas havia aquela melodia que parecia me seguir o dia todo depois que eu acordava. E eu estava tão, tão feliz durante o sonho que não era à toa que, quando amanhecia, tia Margarida tinha que me arrastar para fora da cama. Era a melhor parte do meu dia. Eu não queria acordar.
Mas aí, como tudo que é bom, acabava. E lá estava eu, acordando para mais um dia, idêntico aos anteriores, pronta para começar tudo de novo.
AHHHHHHHH QUE COISA MAIS LINDA! Tô ansiosa pra ler tudo ❤