Conto: Luiza (parte III)

Não leia sem antes ler a parte I e a parte II

No dia seguinte, quando a minha mãe me pediu pra comprar pão e queijo, imediatamente pensei na padaria que ficava voltada para uma das esquinas da praça. Eu teria que pedalar dois quilômetros até lá, quando poderia simplesmente descer três ruas, comprar o pão e o queijo, e ficar jogando Super Mario Bros no Super Nintendo mais velho do que tudo. Mesmo assim, peguei o dinheiro, peguei a bicicleta, e saí pedalando.
Fiquei trabalhando na tentativa de me convencer que só estava fazendo aquilo porque eu queria pedalar. Ou que estava indo até lá porque o pão daquela padaria era melhor, ou porque o queijo lá era mais barato. Cheguei até a pensar comigo mesmo que estava indo pra praça como desculpa pra comer mais um cachorro quente de carne humana. Mas quando cheguei lá e a vi desenhando no banco de sempre, esqueci do pão e do cachorro quente. Eu sabia exatamente porque estava lá e sabia que minha mãe não veria o pão ou o queijo tão cedo naquele dia.
Estacionei a bicicleta e me sentei ao lado dela sem ser convidado. Ela mal levantou os olhos, mas vi um pequeno projeto de sorriso enquanto ela fingia não prestar atenção. Mas eu sabia que ela tinha reparado. Eu tinha até passado perfume!
Espichei o pescoço pra ver o que ela estava desenhando, e vi que seu alvo hoje era um cachorro de rua, daqueles bem sujos, com o pêlo embaraçado, que estava deitado na grama, perto de uma árvore, com a cara mais feliz do mundo. Ela ainda estava nos traços iniciais, mas já era como se fosse um esboço perfeito. Toda vez que errava um traço, ela apagava com uma borracha, tentando não borrar, e começava de novo. Percebi, após longos dez minutos, que ela trabalhava com tamanha perfeição que quase nunca tinha que apelar pra borracha.
– O que você faz da vida? – ela perguntou, de repente, e eu me assustei porque até então ela não tinha dito nada – Além de me seguir, claro.
– Eu não to te perseguindo. – respondi, e resolvi dizer a mentira que eu vinha proferindo há horas na minha cabeça pra ver se ela se tornava mais real – Eu vim comprar pão. – e apontei pra padaria.
Ela olhou demoradamente para a padaria, e então olhou pra mim, desde os meus All Star surrados e rasgados, até o boné preto, virado com a aba para trás, que escondia o pseudo-moicano que estava começando a crescer.
– Não to vendo nenhuma sacola de pão. – ela disse, simplesmente. Respirei fundo e me espreguicei sem a mínima vontade.
– Eu to dando uma descansada primeiro. Cansa vir de bicicleta até aqui.
– Veio de muito longe?
– Não. É só que eu pego um monte de subidas pra chegar até aqui.
Ela deve ter pensado a mesma coisa que eu, e me pego na mentira mais deslavada da face da terra. Não havia subidas naquela parte de São Paulo. A maior parte das ruas era plana. O que queria dizer que, pra eu estar cansado, necessariamente teria que ter vindo de longe.
Mas ela não disse nada, e continuou desenhando.
– Eu estudo. – resolvi responder à sua pergunta inicial, só pra ver se desse jeito a gente iniciava algum tipo de conversa – Tipo, eu to de férias. Mas eu estudo. To no terceiro ano.
– Eu também. – ela respondeu, mesmo sem ter sido perguntada. Encarei como um bom sinal.
– Você estuda onde? – perguntei, porque, vai que é de algum colégio que eu conheço? Ou que ela tem amigos que eu conheça? Nunca se sabe.
– Aqui perto… – sua voz foi morrendo aos pouquinhos enquanto ela fazia uma careta de concentração pra desenhar o focinho do cachorro com a boca aberta e babona.
– Você ainda não me disse o seu nome. – eu insisti. Não estava muito afim de desistir mesmo que ela demonstrasse zero interesse. Ela desfez a careta e sorriu sem me olhar.
– Pra que quer saber?
– É chato falar com alguém sem saber o nome dela.
– Minha mãe me disse pra não dizer meu nome pra estranhos.
Eu ri.
– O certo seria “não falar com estranhos”, e acho que você já desobedeceu. – afirmei, fazendo com que ela parasse de desenhar pra rir do meu comentário. Reparei que covinhas se formavam nas bochechas dela quando ela ria, e que ela se inclinava pra frente. Ela tinha um jeito bonito de rir.
– É, acho que já.
– Então, que diferença vai fazer? Se você já sabe o meu nome, eu não sou mais um estranho pra você, certo?
Ela me olhou como se quisesse decifrar o que eu estava pensando, mas achei bom permanecer com aquela cara de quem quer saber só por saber. Ela definitivamente não ia querer invadir os meus pensamentos. Não mesmo.
Ela não respondeu de imediato. Na verdade, ela permaneceu em silêncio até o momento em que terminou de desenhar o cachorro – convenientemente deitado na mesma posição durante uma hora – e recolheu suas coisas. Como no dia anterior, se levantou e me deu um sorrisinho enquanto ia embora.
– Tchau, Diogo.
– Você não vai mesmo me falar? – perguntei, enquanto ela se afastava. Ela olhou brevemente pra trás, por tempo suficiente pra me dizer:
– Luiza.
Voltei pra casa sem o pão e sem o queijo, com somente um nome na cabeça. Como castigo, minha mãe me fez ir até o mercado pra ela pra comprar pão, queijo, requeijão, café, açúcar e achocolatado. Tudo isso andando.

[continua]

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