Conto: Luiza (parte VI)

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Quando cheguei em casa, peguei o bloco de recados da minha mãe, uma caneta meio detonada e tentei tirar aquilo da minha cabeça.
Escrevi e reescrevi os dois primeiros versos pelo menos vinte vezes. Cada vez que eu escrevia, cantarolava naquela melodia que eu já tinha fixa na memória, e via defeitos. Não estava bom o suficiente pra mim. Não estava bom o suficiente pra ela.
Eu já tinha desistido de entender o que estava acontecendo. A Luiza não era algo que eu pudesse explicar, e o jeito como ela estava fazendo eu me sentir – desnorteado, idiota, atraído, retardado – não era algo a que eu estava acostumado. Eu não estava acostumado a ter aquela… vontade de ver alguém. Ou a levar alguém a sério como eu a estava levando. Ou sequer a me importar com o que alguém pensava de mim, como me importava com ela. De repente, toda mínima coisa e cada pequena atitude parecia fazer diferença quando se tratava dela.
Fiquei pelo menos uma hora trabalhando nos primeiros dois versos antes de passar para os próximos. Eu tinha só um minúsculo trecho do que eu imaginava que viria a ser uma música, mas já me parecia ótimo. Era mais que tudo que eu tinha tido até então. E era tudo por causa dela.

Pra minha surpresa, na tarde seguinte, a Luiza não estava preparada pra desenhar, ou já desenhando, como geralmente fazia. Trazia pendurada no ombro uma dessas ecobags, e tinha uma bicicleta estacionada do seu lado.
– Estava só esperando você chegar. – ela disse, se levantando de pronto e me dando o sorriso mais lindo do mundo. Até o sol ficou pequeno.
– Pra quê? – perguntei, confuso. Ela já começou a empurrar a bicicleta e tive que correr pra acompanhá-la.
– Cansei daqui. Quero ir na Praça do Pôr do Sol.
Pra quem não faz idéia, a Praça do Pôr do Sol é um lugar que fica em Pinheiros, em São Paulo. É bem legal e tem uma vista da hora. Só que era longe de onde a gente estava. Longe tipo uns cinco quilômetros.
E eu já tinha pedalado dois até ali só pra ver ela.
Mas quando ela parou e perguntou “não vem?”, eu não tive coragem de dizer não pra ela. Eu não teria dito não nem se ela me pedisse pra pedalar até uma praça na Argentina. Eu pedalaria pra sempre se ela sorrisse pra mim mais uma vez.
Cara, como eu sou otário.
Então subi na bicicleta e, no ritmo dela, pedalamos os cinco quilômetros até a bendita Praça do Pôr do Sol. Não estava nem perto do entardecer, mas a vista continuava o máximo. A Luiza se acomodou perto de uma árvore, e eu meio que desabei do lado dela. Eu tava morto.
– Achei que você agüentasse mais que isso. – ela brincou, fingindo um olhar de decepção. Eu arfei.
– Eu já tinha pedalado até a pracinha! – justifiquei. Ela parou de mexer na sua ecobag e me olhou de um jeito curioso.
– Tinha pedalado quanto? – quis saber.
Hesitei. Ela devia pensar que eu morava ali perto. Na verdade, eu tinha quase certeza de ter dito a ela que morava ali perto. Mas quem sabe se ela soubesse o quanto eu estava pedalando por ela, isso fizesse ela enxergar parte do que estava se passando ali.
– Uns dois quilômetros. – respondi. O queixo dela caiu lentamente, numa expressão linda de surpresa.
– Você pedala dois quilômetros todo dia até a praça? – tornou a perguntar, e eu dei de ombros, tirando o boné pra deixar refrescar a cabeça.
– O cachorro quente de lá é muito bom.
Ela engoliu a resposta tanto quanto qualquer um engoliria. Me olhou chocada por mais um minuto, então voltou à sua tarefa de tirar o material de desenho de dentro da bolsa, mas agora com um olhar mais pensativo, mais pesado. Acho que tinha pego ela de surpresa. Mas que parte do “venho aqui todo dia pra te ver” ela não tinha entendido ainda? Como era possível que ela não tivesse percebido?
Nenhum de nós disse mais nada enquanto ela desenhava a paisagem, sem se prender a nada específico. Quando já estava naquilo há uma meia hora, ela suspirou.
– Eu adoro essa praça. – comentou, e percebi que ela estava tão incomodada com o silêncio-pós-confissão quanto eu.
– Fazia tempo que eu não vinha. – falei – Foi aqui que eu e os moleques resolvemos montar a banda.
– Sério? – ela perguntou, com um leve sorriso, mas sem olhar pra mim – Como foi?
– A gente tava aqui zoando e tocando violão. Improvisando umas músicas, sabe? – contei, rindo ao me lembrar do dia – Ai um deles, o Cadu, tava andando de skate e tomou um puta tombo e caiu de bunda no chão, e pra zoar com ele eu inventei na hora uma música idiota sobre aquilo. E eles acharam legal, e algum de nós, não lembro quem, veio com essa idéia de tocar.
Fiz uma pausa e respirei fundo antes de continuar. Lembrar daqueles dias sempre me dava vontade de rir. A cena do Cadu caindo do skate sempre me provocava acessos de riso.
– Ai a gente começou a tocar só de brincadeira, só que não parou mais. Já faz mais de um ano que a gente se reúne todo sábado pra tocar.
– Vocês tem um nome? – a Luiza perguntou.
– Como assim? – que burro!
– A banda, tem um nome?
– Não. Nenhum fixo.
– Sem nome, sem música… fica difícil sair da garagem desse jeito.
Não disse nada. Ela tinha razão, mas era meio como mexer numa ferida do meu ego. Não gostava daquilo.
– Foi mal. – ela se desculpou, logo em seguida. Eu fingi que não era nada.
– De boa.
Mais uma hora sem conversar muito. Ela me contou de algumas vezes em que tinha estado ali com algumas amigas, umas histórias engraçadas, mas sempre histórias breves. Sua concentração era toda no desenho. Quando percebemos, já eram quase seis.
Então ela fez a pergunta que mudaria tudo.
– Se a gente ficar pra ver o pôr do sol, você se importa de me levar em casa depois?
Ela podia ter me pedido qualquer coisa. Ela podia ter me pedido pra esperar por ela ajoelhado no meio da rua. Eu teria dito sim. Mas aquilo pra mim foi como se ela me convidasse a finalmente entrar no mundinho fechado da Luiza, o mundinho que até agora ela não queria me deixar entrar. Então, atordoado e feliz como um idiota, respondi:
– Claro!
Praticamente babando.
Então nós esperamos o sol se pôr. Nenhum de nós dois disse coisa alguma na hora que se seguiu, até o sol desaparecer. Quando já estava escurecendo, pegamos nossas bicicletas e refizemos nosso caminho.
Pouco antes de chegarmos à praça, Luiza virou numa rua à direita. Seguiu nela até o final, então virou a direita de novo, e então à esquerda. Parou e desceu da bicicleta em frente a uma casinha de portão azul claro, que era tão a cara dela que não a imaginaria morando em nenhum outro lugar.
– Casa bonita. – falei, só pra romper aquele silêncio. Ela sorriu, e destrancou o portão.
– Obrigada. – ela abriu o portão e colocou a bicicleta pra dentro. Ainda com o portão meio aberto, parou pra me olhar – Te vejo amanhã?
– E quantas vezes você quiser.
Na hora, eu me senti meio retardado por ter dito isso. Muito retardado. Esse é o tipo de pensamento que cara nenhum expressa em voz alta, a menos que esteja realmente dando muita idéia numa garota – e, em geral, quando dizia isso, não estava falando sério. Não era o caso ali. Eu não estava tentando dar idéia nela – não muito – e não estava mentindo. Aquilo simplesmente me escapou. E tive medo que ela entendesse da maneira errada, que risse, que duvidasse.
Que duvidasse. Eu não ia aceitar que ela duvidasse.
Mas logo ficou claro que aquela tinha sido a melhor coisa que eu poderia ter dito em toda a minha vida. Naquela hora, ser idiota me pareceu a melhor coisa do mundo, porque tive o resultado mais inesperado que alguém poderia imaginar. Quando disse isso, a Luiza me olhou por um minuto, e, sem pensar, me beijou.
Não sei o que foi mais incrível: o fato de ela ter me surpreendido, ou estar beijando a Luiza de fato, fora do mundinho da minha imaginação fértil. De repente, ela passou uma mão por trás da minha cabeça e me puxou pra ela, e, cara, o que mais eu podia fazer? Eu queria aquilo, e queria tanto que não fazia idéia de como conseguia não fazer aquilo todos os dias desde que eu a tinha conhecido. Como era possível que eu conseguisse ficar tão próximo dela sem sentir aquele cheiro, aquele gosto, sem puxar ela pra mim todos os dias?
Então, tão rápido quanto ela havia me puxado, ela me soltou, e respirou fundo. Ainda meio bobo, não consegui reagir a tempo de impedir que ela entrasse. Otário. Fiquei na frente da casa dela, vendo a noite cair, por mais dez minutos antes de conseguir me mover de novo. Eu era o idiota mais feliz daquela cidade.

[continua]

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