Conto: Luiza (parte VII)

Antes, leia também:
Parte I
Parte II
Parte III
Parte IV
Parte V
Parte VI


Eu não fazia idéia de como agir no dia seguinte. Aquele beijo pra mim tinha sido tudo o que eu precisava pra confirmar que eu não estava viajando, e que a Luiza, no mínimo, pensava em mim quase da mesma maneira como eu pensava nela.
Estava pensando nisso ainda quando cheguei na nossa praça – cara, que brega isso! – e ela não estava lá. Sentei e fiquei esperando por pelo menos uma meia hora, até levantar e começar a esticar o pescoço em todas as direções pra ver se eu não a tinha perdido de vista. Não tinha. Ela não estava em lugar nenhum.
Pensei em ir embora. Pensei por uns dez segundos que aquilo queria dizer que eu estava errado sobre tudo e que não, ela não pensava em mim daquela forma, que tinha agido por impulso, e que, se não tinha aparecido, era porque não queria mais me ver. Passei quase vinte segundos tentando me conformar com isso.
Ai me lembrei daquele beijo e mandei a piedade pro espaço. Subi na bicicleta e refiz o trajeto até a casa dela, errando a rua duas vezes até conseguir achar a casa dela. Ela não teria me beijado por nada. Ela não teria mantido a minha companhia e me aceitado ao lado dela por nada. Eu podia não saber quase nada sobre a Luiza, mas eu sabia aquilo: eu sabia que ela não era o tipo de pessoa que age por impulso. Todas as palavras dela pareciam pensadas, toda atitude dela me parecia pontuada. Não tinha sido só um beijo, não tinha sido só na hora. Ela também tinha pensado naquilo antes. Tinha que ter.
Então eu, todo suado e tentando ajeitar o boné na cabeça, toquei a campainha da casa dela. Meu coração estava disparado, e, por somente um instante, eu me senti um babaca por ter ido até ali. A Luiza podia não estar em casa, ou podia não me deixar entrar. Podia ser que a mãe dela atendesse e achasse que eu era algum maluco. Podia ser que ela me expulsasse dali.
Ou podia ser que ela me deixasse entrar. E essa possibilidade positiva era tudo de que eu precisava no momento.
Quando a porta abriu, junto com uma onda louca de adrenalina, veio aquele último aperto no coração. Ai eu vi a Luiza aparecendo de pantufas e moletom, e parando na frente da porta. Eu não sabia do que eu tinha duvidado. Ela não me olharia daquele jeito por nenhum outro motivo. Eu não podia estar errado.
Ela foi até o portão, e percebi que ela estava com o nariz vermelho e os olhos caídos por detrás dos óculos redondos. A massa inconstante de cabelo preto estava ainda mais bagunçada, presa de qualquer jeito no alto da cabeça. Ela estava com uma cara péssima, e ainda assim era a garota mais bonita que eu jamais tinha imaginado que fosse um dia me beijar. E estava corando. De novo.
A Luiza abriu o portão, e me deixou entrar. Não fez menção de me beijar de novo, nem esboçou qualquer movimento. Depois de fechar o portão, e de eu ter encostado a bicicleta num canto da garagem, ela me olhou tão surpresa que eu quase vi um sorriso ameaçando se formar. Então ela me acompanhou pra dentro da sua casa, onde a primeira coisa que eu encontrei foram dois sofás azuis, um tapete azul, uma tevê com a imagem estática do Marlon Brando na tela, e muito papel higiênico amassado no chão.
– Poderoso Chefão! Eu gosto. – sorri, tentando não aparentar todo aquele incômodo bizarro que eu estava sentindo por dentro. Algo tipo corujas no estômago.
– Você veio mesmo até aqui.
Não era uma pergunta, nem algo tipo “saia da minha casa”. A Luiza disse aquilo como se não conseguisse acreditar em si mesma, ou em mim parado ali. Como se fosse a coisa mais incomum do mundo o cara que ela tinha beijado no dia anterior vir até a casa dela procurá-la.
– Vim. Você não apareceu. – o “fiquei preocupado” estava implícito, então eu não o disse em voz alta – Você ta mal?
– Rinite atacada. – ela fungou alto, e finalmente saiu de perto da porta – Senta aí. – convidou.
Eu me sentei, e ela se sentou comigo, na outra ponta do sofá. Fungou de novo.
– Por que você veio? – quis saber.
Precisei pensar um pouco naquela resposta. Nem eu sabia direito. Eu não sabia de mais nada. Sabia que eu precisava vê-la todo dia, e não porque era parte da minha rotina. Precisava arranjar sempre alguma desculpa que me levasse até ela, precisava estar perto dela, queria aquilo. Passava a droga da noite toda esperando por aquilo. Não era mais uma coisa de “não tenho nada pra fazer”. A Luiza era como um item fixo na minha agenda. Não podia ser mudado. Não queria que mudasse.
Mas não poderia dizer nada daquilo sem parecer muito, muito retardado, então optei por algo que não respondesse nada.
– “Vou fazer uma proposta irrecusável.” – respondi, imitando a voz do Marlon Brando no filme. Ficou uma droga, mas ela desatou a rir, parando só quando o riso se transformou em tosse e ela enfim parou pra assoar o nariz.
– Bom, já que você veio…
Ela deu play, e ficamos as duas horas seguintes assistindo o filme.
Ou melhor, eu fiquei assistindo o filme. No meio do caminho, a Luiza, fungando como louca, começou a fechar os olhos bem lentamente, e foi se inclinando pro lado, pegando no sono. Quando eu me dei conta, ela já estava com a cabeça apoiada no sofá, virada na minha direção, dormindo num sono de anjo.
Eu tentei mesmo não ficar olhando enquanto ela dormia, mas era difícil. Ela era linda mesmo com catarro escorrendo do nariz, olhos inchados e a boca semiaberta. Não tinha como não ficar prestando atenção no movimento do peito dela subindo e descendo enquanto ela respirava – por mais obsceno que isso possa te parecer. Era meio hipnotizante.
Então ela se remexeu, e se deitou toda encolhida no sofá, a cabeça a tipo uns dois milímetros da minha perna. Não resisti. Peguei uma almofada, coloquei no meu colo, e, sem acordá-la, fiz com que ela apoiasse a cabeça na almofada.
Terminei de assistir o Poderoso Chefão sentindo o peso e o calor dela no meu colo. Eu mal me mexia, apavorado que ela pudesse acordar. (quase) Sem querer, vi meus dedos inevitavelmente se enrolando nos fios de cabelo dela, e fiquei impressionado pelo fato de que, por mais bagunçados que eles fossem, eram realmente muito bons de se mexer. E mesmo depois que o filme acabou, fiquei brincando com o cabelo dela enquanto ela dormia.
O tempo foi passando, e eu precisava ir pra casa. Não queria, mas tinha que ir. Desliguei a tevê quase sem me mexer, então muito lentamente fui me levantando, deixando a almofada – com a Luiza ainda sobre ela – sobre o sofá. Mesmo querendo muito ficar, achei as chaves que ela tinha usado pra abrir o portão, abri, deixei a chave sobre a mesinha de centro, peguei minha bicicleta e fui pra casa.

Naquela noite, o Tatu me ligou pra lembrar que tinha ensaio no dia seguinte.
Eu não estava totalmente afim de ir. Eu amava tocar, e a banda era uma das melhores partes da minha semana. Era. Até eu conhecer a Luiza.
Era meio babaca da minha parte acabar priorizando uma garota que eu nem conhecia direito em comparação com os caras que tocavam comigo e que eram meus amigos havia tanto tempo. Mas se eu tinha que colocar na balança “tocar amanhã” contra “ficar dois segundos com a Luiza”, a balança penderia pro lado dela.
E eu já tinha aceitado que era desse jeito. Se estar na presença dela me custava aquele comportamento babaca, eu aceitava. Fazia parte. Eu podia viver com aquilo.
Então tive a idéia mais maluca. Mas podia dar certo.

Não sai no horário habitual naquele dia. Acessei o Google Maps e descobri como chegar na pracinha de ônibus. Pus a guitarra nas costas e fui. De lá, segui a pé pra casa da Luiza, ignorando o peso e o cansaço. Estava bem mais cedo do que o horário em que costumávamos nos encontrar, mas tudo bem. Desde que ela estivesse em casa, o horário era perfeito.
Cheguei lá, tentei ficar mais ou menos apresentável – o que não dava pra ser feito, considerando que eu estava mais suado que tudo no mundo – e toquei a campainha. Um remexer na cortina, e eu travei de medo que, de repente, não fosse ela. Mas quando a porta se abriu, era a Luiza quem estava vindo me receber.
Ela estava melhor, e sorriu de um jeito tão aberto quando me viu que me senti lisonjeado. Veio na minha direção e abriu o portão ainda com o olhar surpreso.
– Não achei que você viria! – exclamou, e pude ouvir um ‘de novo’ implícito naquela frase. Dei um pequeno sorriso.
– Vim te fazer um convite.
– Que convite?
– Quero te levar pro ensaio da minha banda.
A Luiza me olhou chocada por um momento, então deu de ombros, numa indiferença que eu não engoli nem por um segundo sequer. Não adiantava o quanto ela tentasse fazer de conta que não fazia diferença. Eu via que fazia.
– Ta… deixa só eu trocar de roupa. – falou.
Então me deixou entrar, e enquanto eu esperava na sala silenciosa, ela desapareceu por uma escada de madeira gasta e foi se trocar. Me sentei num sofá e deixei a guitarra descansando no outro. Minhas costas estavam doloridas e minhas pernas estavam cansadas, mas tinha valido. Ela ia comigo. Isso queria dizer alguma coisa.
Quando ela desceu de novo, meia hora depois – meu Deus, como as garotas demoram pra se arrumar! – ela estava totalmente diferente. E linda. Tipo muito bonita mesmo. Aquele tipo de linda que faz você ficar se perguntando como é possível que você consiga estar no mesmo ambiente que ela sem ficar imaginando todo tipo de absurdo. E, depois de ter olhado pra ela com cara de besta por uns dez segundos, eu a vi corando, e nos apressando pra ir.
Andamos até o ponto de ônibus, e pegamos um que voltava pra minha casa – parando, especificamente, uma rua depois da minha. Ao passarmos por ela em direção à casa do Cadu, apontei meu prédio.
– Ta vendo aquele prédio amarelo? – a Luiza fez que sim com a cabeça – Eu moro ali.
– Olha só, agora vou poder invadir a sua casa sempre que quiser. – ela brincou. Desejei que ela não tivesse dito aquilo em tom de brincadeira.
– Pode aparecer quando quiser. Só não garanto que eu vá te deixar entrar. – brinquei também, e, pra minha surpresa, ela me deu um cutucão doído, e ao mesmo tempo muito bom, bem entre as costelas.
– Eu te deixei entrar na minha casa. – Luiza afirmou, como se encerrasse a questão.
– Mas como eu vou me certificar de que você não é uma maluca? Eu nem sei se aquela casa é mesmo sua. Não vi ninguém além de você lá dentro. Você poderia estar invadindo a casa de alguém.
– Não confia em mim?
Não pensei antes de responder. Eu sabia a resposta na ponta da língua, a resposta perfeita.
– Você confia?
Ela assentiu como se admitisse ter perdido a discussão, e caminhamos mais um pouco em silêncio. Eu estava indo exageradamente devagar, e ela não parecia se preocupar com isso. Faltavam quinze minutos pro ensaio, mas, do que dependesse de mim, eu chegaria atrasado.
– Eu moro com os meus pais, mas eles trabalham o dia inteiro. – a Luiza começou a dizer, sem eu sequer ter perguntado nada – Então eu fico sozinha a maior parte do tempo.
– Sem irmãos? – perguntei, aproveitando a deixa. Ela balançou a cabeça negativamente.
– E você?
– Um mais novo.
– Eu sempre quis ter um irmão mais velho. Ou um irmão, ou uma irmã, de qualquer idade. É meio chato crescer sozinha.
– É meio chato ter irmãos também. Eles enchem muito o saco. Tem hora que eu tenho vontade de mandar calar a boca.
Ela riu.
– Vocês brigam muito? – perguntou. Eu fiz uma careta.
– Já foi pior. – admiti – Tipo, antes a gente morava num apartamento menor, e eu dividia o quarto com ele. E ele tinha essa mania de ficar pegando as minhas coisas pra brincar, e eu odeio isso. Ai a gente se mudou, ele ganhou um quarto só pra ele, e problema resolvido.
– Faz tempo que vocês se mudaram?
– Uns seis meses mais ou menos.
– Ah, tá…
Não dissemos mais nada até chegar na casa do Cadu. Eles já estavam todos lá, e, depois de dois minutos de algazarra quando eu cheguei, todo mundo calou a boca. Foi quando perceberam a presença da Luiza.
Os caras olharam pra mim procurando por alguma explicação, e eu calmamente tirei a guitarra das costas. A Luiza a essa altura já estava mais rosada do que eu já tinha visto até então, e veio pro meu lado, um pouco atrás de mim, como se procurasse proteção. Achei o máximo.
– Ahn, essa é a Luiza. Eu trouxe ela pro ensaio hoje. – falei, como se servisse de explicação. Todos eles ergueram a mão e acenaram um oi.
Enquanto a gente ajeitava as coisas, a Luiza arranjou um lugar pra se sentar. Pra minha surpresa, puxou o bloco de desenhos de dentro da bolsa, junto com um estojo. Sorri, porque aquilo era muito a cara dela. Nos desenhar enquanto tocávamos. Isso era muito Luiza.
Cara, como eu podia já julgar o que era ou não a cara dela? Qual era o meu problema?
Tentei não me concentrar nisso quando começamos a tocar – e por ‘isso’ eu quero dizer ‘ela’. Tentei não prestar atenção ao jeito como o cabelo dela caía no rosto enquanto ela desenhava, nem ficar contando o tempo que levava pra ela mudar de posição na cadeira, ou reparar nos mínimos detalhes que faziam parte do processo de concentração da Luiza. Eu queria mais do que tudo na vida não prestar atenção a tudo que vinha dela, e me concentrar na música, mas não conseguia. Errava os acordes, errava a letra. Não tinha foco em nada que não fosse ela.
Prolonguei o ensaio o máximo que pude. Tentei agir naturalmente, mas todos os caras já tinham se ligado que eu estava diferente. Nenhum deles comentou nada, mas tomei mais tapas na cabeça por erros de distração do que jamais tinha tomado na vida. Eu não me importava. Ela estava ali.
E, quando recolhemos as coisas pra ir embora, o único no desenho era eu.
Claro que eu não comentei isso com ela. Eu não cheguei na lata e disse ‘ah, então quer dizer que você só me desenhou?’, porque eu não era nenhum idiota. Eu fiz de conta que não vi, e recolhi as minhas coisas enquanto ela recolhia as dela. Pra minha surpresa, sem ninguém ter pedido absolutamente nada, a primeira coisa que a Luiza fez depois de ter pego as próprias coisas foi ajudar os caras a recolher todo o resto. Fiquei maravilhado, e até eu, que geralmente deixava tudo pro resto deles fazer, acabei ajudando. Só depois que tudo estava organizado – do que eu presumi que fosse o jeito dela, já que, se dependesse de nós, estaria tudo num canto jogado – foi que recolhemos enfim as nossas coisas e fomos embora.
Não sem antes uma boa dose de zoação silenciosa dos meus colegas de banda, é claro.

[continua] 

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