Conto: Meu Passado me Condena (parte VI)

Antes, leia:

Parte I
Parte II
Parte III
Parte IV
Parte V

Ok, então eu talvez seja uma covarde. Ou uma namorada muito ruim. Eu não sei que adjetivo ruim alguém escolheria pra me classificar, mas seria bem provável que todos estivessem certos.
Porque ainda que eu tivesse escutado o conselho de Mãe Idira, quando Victor saiu do banho e veio até a sala, eu fingi que estava dormindo.
E continuei fingindo, mesmo quando ele me pegou no colo e me levou até o meu quarto, me pôs na cama e me cobriu.
Pobrezinho. Ele merecia saber. Ele merecia alguém melhor do que eu com ele. No mínimo, alguém mais corajosa que eu.
No dia seguinte, prometi a mim mesma, eu esclareceria tudo.

Mas o dia seguinte veio e se foi. E eu não abri a minha boca.
O Victor, eu sabia, estava bem longe de ter esquecido o ocorrido. Eu via a acusação nos olhos dele, a dúvida no seu jeito de falar, as suas tentativas frustradas de conversar comigo. Mas a toda hora, eu arranjava uma desculpa diferente pra fugir do assunto.
Passei a manhã toda revirando meu antigo baú com ele. Era um móvel pequeno, de criança, onde ficavam minhas fotos e cartas antigas, a maior parte coisas sobre a minha mãe. Contei pra ele mais do meu passado, mas meu passado em família. Contei da criança que eu tinha sido e da história por trás de cada foto e de cada cartão, tentando ao máximo distraí-lo e fazer com que a tarefa nos tomasse o dia todo.
Então almoçamos, e quando meu pai anunciou que ia ao mercado, eu já me prontifiquei a ir junto. Disse que estava com saudades de fazer compras, que na república era sempre tudo corrido, com comida instantânea. Arrastei Victor comigo, e metade da tarde se passou enquanto nós andávamos por corredores cheios de produtos e gente que apontava pra mim e falava.
Me senti como uma celebridade, e não gostei nem um pouco. Quanto mais eu tentava escapar, percebi, mais os problemas corriam atrás de mim, gritando, como se fizessem questão de serem notados.
E quando eu digo gritando, eu quero dizer literalmente gritando.
– KARINEEEEEEEE!
Oh, não. Anita. De novo.
Me virei, sem graça, pronta pra dar uma risadinha totalmente sem vontade e pedir pra ela parar de gritar, mas tinha um único problema que me fez cair o queixo ao invés de dizer alguma coisa.
Anita não estava sozinha.
E aparentemente não tinha abandonado as velhas companhias.
Porque ela estava dentro de um carrinho de supermercado (eu sei!!!), sendo empurrada por duas garotas que eu conhecia e sendo seguidas de perto por outro cara que eu também conhecia.
Eu devia ter ido embora enquanto podia, eu percebi, logo de cara. Agora sim eu estava ferrada.
Victor parou ao meu lado e observou a cena, de braços cruzados. Meu pai continuou andando, virando momentaneamente com o barulho que meus (ex) amigos estavam produzindo. E logo ali estavam eles, na minha frente.
– Oi, Anita. – eu cumprimentei, com o meu falso sorriso reservado somente às peças totalmente dispensáveis do meu passado.
– Piriga, saca só! – ela saiu do carrinho com dificuldade e passou os braços pelos ombros das meninas que empurravam o carrinho – Tenho certeza de que você se lembra delas.
O que eu posso dizer? Que adoraria não ter do que me lembrar?
– Oi, Priscila. – cumprimentei a primeira, mais gordinha e menos morena do que eu me lembrava, com um breve aceno – Oi, Ítala. – e dei outro aceno pra artificialmente ruiva, porém ainda assim bonita. As duas sorriram pra mim.
– Quanto tempo! – Priscila exclamou, daquele jeito estranho e anasalado dela de falar.
– Quando a Anita disse que tinha te encontrado, a gente não acreditou! – Ítala disse, então, animada – Eu nem acredito que você voltou, tipo assim, depois de dar as costas pra todo mundo por tanto tempo.
Obrigada, Ítala, agora meu namorado vai achar que eu tenho motivos pra me esconder e/ou que eu sou uma pessoa muito ruim. Ou talvez as duas coisas.
– Eu não virei as costas pra ninguém. – me apressei a negar, olhando nervosamente pra Victor. Ele estava me encarando com olhos cheios de perguntas.
– Me engana que eu gosto! – Ítala riu-se, mas me distrai dela quando Anita apareceu puxando o braço ainda fino do cara que, na minha época, costumava ser o moreno mais desejado da cidade.
– Olha só quem está aqui! – ela disse, como se tivesse descoberto a América.
– E ai? – o rapaz acenou, com o seu sorriso de comercial de pasta de dente.
Anos atrás, eu morreria por aquele sorriso. Anos atrás, eu devolveria um sorriso nada ingênuo pra ele, do tipo que pergunta “você vai me beijar ou o quê?”
Mas hoje, quando ele veio até mim e me deu um beijo na bochecha, a vontade que eu tive de me enterrar viva não tinha nada a ver com o fato de ele ser muito bonito, nem inegavelmente gostoso. E sim com o fato de ele ainda existir pra complicar a minha vida.
– O Tim tava ali atrás, pensando no que dizer pra você! – Anita disse, com uma piscadela. Victor pareceu virar pedra ao meu lado.
– Ele disse que sentiu muito a sua falta! – Ítala disse, enfatizando o muito de um jeito que só ela sabia fazer. Então Priscila deu uma risadinha travessa.
– Muita gente sentiu muito a sua falta, se é que você me entende! – ela apontou. Eu quis que a terra se abrisse pra me engolir. Mas Tim deu uma risada rouca e se virou pra mim.
– Não ligue pra elas. – e pôs a mão no meu braço, como se ignorasse o fato de que tinha um cara ao meu lado, segurando a minha mão – Vai ficar aqui muito tempo? A gente podia dar uma saída.
Hm, não, a gente não pode dar uma saída.
– Na verdade, eu vim só passar os dias com o meu namorado – E olhei pra Victor com um sorriso. Ele pareceu gostar – Em casa.
A mudança no cenário foi imediata. De repente, três rostos (Anita já sabia) olhavam pra mim, incrédulos.
– Eu falei! – Anita exclamou, estendendo a mão direita, a palma pra cima – Podem ir me pagando!
– Namorado? – Tim fez uma careta, então deu dois tapinhas no ombro de Victor – Cara, boa sorte com isso!
E, no minuto seguinte, estavam indo embora.
Sabe, talvez, só talvez, eu devesse considerar ficar trancada dentro do meu quarto pelo resto do feriado. Acho que seria mais seguro pra saúde do meu relacionamento.

[continua…]

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