Conto: Meu Passado me Condena (parte VII)

Antes, leia:

Parte I
Parte II
Parte III
Parte IV
Parte V
Parte VI

Fugi do Victor o resto do dia. Inventei mil desculpas pra não ficar perto dele. Seu estado passou de desconfiado pra completamente puto da vida.
Eu estava perdida.

Manhã do terceiro dia.
Eu só precisava sobreviver mais dois dias inteiros. Na noite do dia seguinte, eu já estaria indo embora com o Victor, e tudo seria esquecido. Pra sempre. Deixado pra trás pra nunca mais nos incomodar.
Exceto que, naquela manhã magnificamente ensolarada e abafada – como tantas outras manhãs naquela época do ano, que faziam o interior paulista parecer um deserto – a campainha tocou um pouco depois de todos em casa estarem de pé, e Mãe Idira abriu as portas pra uma visita nada especial e completamente inesperada.
– Dona Lourdes, que surpresa! – escutei minha madrasta falando, e meu corpo enrijeceu. Victor me lançou mais um dos tantos olhares desconfiados só naquela manhã, e eu tentei disfarçar, mas só tinha um pequeno probleminha.
O QUE AQUELA VELHA RABUGENTA ESTAVA FAZENDO NA MINHA CASA?
E tudo bem, ela me odeia. E eu até posso concordar que ela tem motivos suficientes pra isso, e que a nossa birra uma com a outra vem de anos, e ela tem todas as razões pra me aborrecer o quanto ela queira por isso. Mas ainda assim eu me pergunto, por que diabos ela estava fazendo aquilo?
– O que a senhora faz aqui? – ouvi Mãe Idira perguntar, os passos e vozes cada vez mais próximos da sala, onde eu estava fingindo ver televisão com o meu namorado.
– Ouvi dizer que ela estava de volta. – aquela voz rouca e irritante respondeu, enfatizando o “ela” com certo ar de desgosto – Eu precisava ver pra crer.
Então elas alcançaram a sala, e aqueles olhos semicerrados e enrugados me encararam mais uma vez.
Maldita.
– Oh, e acompanhada de um belo rapaz. – observou, se aproximando, me fazendo tremer – Como de costume. Garotos vêm e vão como o tempo, não?
Eu não abri minha boca. Eu estava com vontade de chorar e gritar e mandá-la embora dali.
– Esse é o Victor. – Mãe Idira apresentou, e ele, ao meu lado, apenas acenou brevemente – O namorado da Karine.
– Namorado? – ela zombou – Tai uma novidade. – então virou-se pra Victor, apontando um dedo magro e enrugado pra ele – Segure firme essa garota. Ela costuma ser meio… instável, quando se trata de rapazes.
– Ah, mas as coisas mudam! – exclamei, de repente, abrindo um sorriso irônico que não atingia meus olhos – Tenho certeza de que a senhora me entende, dona Lourdes.
– Não, eu acho que não. – a velha retrucou – Quem nasceu com vocação pra rua nunca vira freira, minha mãe sempre dizia.
– Nunca dei muita atenção aos conselhos dos mais velhos.
– Deveria. Quem sabe assim seria mais educada com as pessoas a que deve esse respeito.
– E talvez não gostasse tanto de me meter onde não sou chamada. Mas, espera um pouquinho. – parei, com um falso ar pensativo – Acho que essa é a senhora.
Ela me olhou, furiosa. Eu levantei, encarando-a de um jeito como eu não olhava ninguém há anos. Eu não sabia se aquilo fazia com que eu me sentisse bem ou não.
– Cuidado, menina. – ela me alertou – Só porque eu fiquei quieta antes, não quer dizer que eu ficarei agora.
– Agora já não faz mais diferença. – blefei. Mas acho que ela sentiu o tremor na minha voz, porque olhou para atrás de mim, para Victor, e sorriu de um jeito malvado.
– Tem certeza? Eu gostaria de saber, se fosse ele. Saber com que tipo de garota da vida eu estou me envolvendo.
Filha da…
– Saber do quê? – Victor interveio então, fisgado pela isca certeira de dona Lourdes. Ela foi se afastando, o sorriso malicioso ainda preso nos lábios.
– Pergunte a ela. – então nos deu as costas – Até logo.
Ah, meu Deus. Ah, meu Deus, meu bom e piedoso Deus.
Agora ferrou tudo!
No minuto seguinte, eu sentia que o olhar de Victor pra cima de mim podia me furar. Seus olhos ampliados pelas lentes dos óculos só faziam piorar a sensação de que ele queria me estrangular – mas não sem antes tirar aquela história a limpo.
E agora, o que eu ia dizer?
– Karine, vem comigo um instantinho. – ele pediu, educado demais. Me limitei a assentir com a cabeça e segui-lo, até o quarto de hóspedes, onde ele estava.
Então nós entramos e ele fechou a porta. À chave.
Se ele fosse meu pai, aquele era o momento onde eu ia tomar uma bronca, umas boas palmadas no bumbum e um castigo. Mas aquele era Victor. Eu não sabia o que esperar de um cara completamente pacífico que estava evidentemente no limite dos seus nervos. Com uma raiva no rosto que não cabia ali.
Engoli a seco o desespero e a vontade de chorar, e me sentei na beirada da cama, de costas pra porta. Ele continuou andando de um lado pro outro, me deixando ainda mais nervosa, ansiosa.
– Eu não costumo ser paranóico. – Victor começou a dizer – Eu não implico com nada, eu confio em você e tento evitar problemas. Você sabe disso.
– Eu sei. – murmurei. Nem tenho certeza de que ele escutou, porque ele estava de costas pra mim, a cabeça encostada no vidro da janela.
– Só que você conseguiu me tirar do sério, Karine. – continuou, fazendo meu coração apertar – Você e essa cidade inteira, que parecem saber mais da minha namorada do que eu sei! Eu não agüento mais ver todo mundo falando de você, dando indiretas, e eu não saber do que se trata!
– Me desculpe! – eu comecei a dizer – É que…
“O que?” seus olhos me perguntavam. E por dentro eu repetia a mesma pergunta. O que? O que eu iria dizer a ele? Que outra mentira eu iria inventar pra encobrir tantos podres da minha história?
– É complicado. – soltei. Não era uma mentira. Mas também não era toda a verdade.
– Então descomplique, Karine. – ele afirmou,  cruzando os braços de um jeito bravo – Eu só quero ouvir de você o que você tem pra me contar. Sem rodeios.
– Victor, tem coisas que aconteceram que eu não me orgulho, ok? – eu disse, a voz saindo meio aguda de desespero, me levantei e fui até ele, pondo as mãos sobre seus braços cruzados no peito – Me diz, é errado querer esquecer as coisas ruins que aconteceram comigo?
– Não é errado. – ele me respondeu – Mas se eu não souber da verdade agora que eu tenho certeza de que você mentiu, eu nunca vou poder confiar em você de novo.
– E se eu contar a você, você nunca mais vai me ver como a Karine de novo. E eu não quero isso! Eu quero voltar pra casa e ainda ter você comigo, do jeito como sempre foi!
– Karine… – ele bufou e soltou os braços, colocando as mãos nos dois lados do meu rosto – Eu não vou te julgar. Eu prometo. Confie em mim pra eu poder confiar em você!
Eu hesitei, por um segundo. Um flash de tantas coisas vergonhosas da minha adolescência em Araçatuba passou pela minha mente, coisas que eu queria esquecer, coisas que eu teria que contar.
Então eu baixei a cabeça e suspirei.
– Eu não… consigo. – sussurrei.
Foi o suficiente pra ele me soltar, abrir a porta do quarto e sair, furioso.

[continua…]

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