Primeiro Capítulo de Ardente Perigo

A promoção valendo o primeiro exemplar autografado de Ardente Perigo está no ar e a todo vapor até o dia 01/10, mas não tem tido tantas participações quanto imaginei que teria. Ai eu pensei com os meus botões, como costuma dizer minha mãe: quem sabe se eles derem uma espiada no primeiro capítulo do livro? =P
E é pra isso que eu estou aqui hoje! Quem quiser, pode conferir agora a introdução e o primeiro capítulo do meu novo livro, e, espero, se animar mais para tê-lo em mãos! Não se esqueçam de deixar um comentário me dizendo o que acharam, combinado?
Divirtam-se!

Seja feita a vossa vontade

Assim na terra como no céu

[…]

Perdoai as nossas ofensas

Assim como nós perdoamos aqueles que nos tem ofendido

E não nos deixei cair em tentação

Livrai-nos de todo o mal

Amém

Capítulo 1

“- O que você fez depois? – perguntou ele, após um minuto.
– Pesquisei um pouco na Internet.
– E isso a convenceu? – sua voz não demonstrava interesse. Mas as mãos estavam agarradas ao volante.
– Não. Nada se encaixava. A maior parte era meio boba. E então… – eu parei.
– O quê?
– Concluí que não importava – sussurrei.
– Não importava? – Seu tom de voz me fez olhar – eu finalmente tinha rompido sua máscara cuidadosamente composta. A expressão dele era incrédula, com um toque de raiva que eu temia.
– Não. – eu disse suavemente – Não importa para mim o que você é.
Um tom ríspido de escárnio penetrou sua voz.
– Você não liga que eu seja um monstro? Que eu não seja humano?
– Não.

Aquela já devia ser a quarta ou quinta vez que eu lia aquelas mesmas linhas. Ainda assim, o arrepio e a eletricidade que percorreram a minha espinha, o riso que tomou conta do meu rosto, tudo era o mesmo. Eu não podia evitar que todas as vezes que eu relesse as discussões e diálogos complexos entre Bella e Edward eu me sentisse desse jeito.
Fui cortada quando a minha mãe se aproximou e se sentou ao meu lado no sofá da sala, me fazendo erguer os olhos do livro. Ela sorriu pra mim e ergueu a capa para ler o título: Crepúsculo. Apenas uma dentre as dezenas de obras do gênero que eu guardava com cuidado no meu quarto.
– Não acredito que você está lendo esse livro de novo. – ela me disse, perplexa. Minha mãe não tinha absolutamente nada a ver comigo: ela não era amante dos livros, era sempre muito aérea e impulsiva. Eu já fazia o tipo decidida, teimosa e pé no chão da família.
– Se você lesse, ia entender o porquê. – afirmei, mostrando a língua. Ela riu e me passou o livro de volta.
– Você devia parar de ler e cuidar da vida real. – apontou, me estendendo o telefone sem fio – O Pablo já ligou três vezes hoje. Se ele ligar a quarta vez, pare de fingir que saiu e atenda logo o menino.
– Eu não mereço isso! – bufei e peguei o telefone, olhando pra ele por alguns segundos, querendo mesmo é jogá-lo na parede com toda a minha força.
– Laura, o que é isso, filha? O garoto é seu namorado! Se as coisas estão desse jeito, por que você simplesmente não fala e termina com ele?
– Porque… porque…
Porque eu era uma covarde. Eu tinha essa resposta na ponta da língua fazia mais de um mês. Minha mãe não era a primeira e nem seria a última a me perguntar isso, mas Pablo era um caso delicado. O nosso namoro tinha demorado a ingressar, e depois de sete meses juntos eu simplesmente não estava mais no clima de continuar com ele.
O problema é que nem todo o meu jeito decidido de ser colaborava quando eu tentava terminar com ele. Pablo era gentil, meigo e me amava – até demais. Ele era tão grudento que eu acabei enjoando. Mas ele era tão sensível que toda vez que eu tentava terminar ele já ficava a ponto de chorar, e eu simplesmente desistia.
– Amanhã começam as aulas, mãe. – falei, com um ar derrotado – Eu vou vê-lo e falo com ele. Não posso fazer isso pelo telefone!
Mamãe simplesmente me lançou um olhar desconfiado e foi embora. Eu fiquei ali, na sala ampla e fria da nossa casa, encarando a parede com a lareira que era acesa somente nos dias mais absurdamente frios do ano e as fotos que traziam pequenos momentos da nossa vida.
Pregados na parede estavam três quadros: o primeiro, do casamento dos meus pais. Minha mãe, com seus rebeldes cachos negros e o seu sorriso sempre aberto, e meu pai, com o mesmo bigode estranho e a careca já ameaçando aparecer. Logo em seguida, uma foto da minha mãe com a minha irmã mais velha, Loren, enquanto ela ainda era um bebê, e uma foto da minha tia, Gilda, comigo no colo logo após o meu nascimento.
Era uma história confusa, a da nossa família. Meus pais eram casados havia quase trinta anos, e minha irmã nascera uns três anos depois de eles terem se casado. Não haviam planejado mais filhos, até minha tia ficar grávida – de mim. Ela era muito nova e solteira, não queria uma filha pra cuidar. Minha mãe me adotou, e eu cresci, sabendo de tudo, mas nunca considerando tia Gilda como minha mãe biológica.
As fotos menores, que seguiam sobre a lareira, eram antigas e algumas recentes. Começavam com uma foto da nossa família reunida, no meu aniversário de sete anos e terminava numa foto minha com Pablo, cujo cabelo ralo castanho entrava em contraste com a pele branca demais, e os óculos, que antes eu achava fofos, agora pareciam emoldurar um rosto que eu não suportava mais olhar.
Suspirei e me agarrei ao meu livro. Se ao menos eu tivesse Edward Cullen, ou uma vida tão complicada e tão melhor como a da sortuda Bella Swan, tudo seria melhor. Mas eu não podia contar com isso. Certas coisas apenas não se tornavam reais.

– Loren, quer fazer o favor de tirar os meus sapatos?
Dez anos de diferença e eu dividia o quarto com a minha irmã mais velha. Loren era mais parecida com a minha tia Gilda do que eu deveria ser, considerando o rolo familiar – tinha os cabelos de um louro escuro, os mesmos dentes pequenos e a covinha no queixo. E a odiosa mania de achar que tudo o que era meu era dela também. A única coisa que trazia da minha mãe eram os cachos.
– Eu vou sair com um cara, eu preciso desses sapatos! – ela justificou, se admirando no espelho. Eu balancei a cabeça e comecei a jogar sobre a cama dela tudo o que ela havia lançado sobre a minha: roupas, meias, bolsas, maquiagem. Loren era a rainha da bagunça, e infelizmente eu sempre estava metida no meio dela.
– Você tem quase trinta anos, devia estar pensando em se casar com um cara! – apontei, rolando os olhos. Ela riu enquanto tirava a blusa e a jogava para o alto, fazendo com que caísse sobre a mesinha do nosso computador.
– Eu estou na idade perfeita pra sequer me lembrar da palavra casamento! – remexeu na pilha de roupas que eu estava fazendo sobre a sua cama e achou outra blusa – Sério, esses romances estão acabando com você. A última vez que eu peguei um livro seu ele falava sobre uma garota que descobriu que era princesa. Quem lê isso?
– O Diário da Princesa é um livro muito bom, sabia?
– Claro. Esse e aquele outro dos vampiros bonitinhos. Eu até concordo que o cara do filme é um gato, mas daí a suspirar por vampiros pelos cantos da sala, fala sério!
– Loren… – parei com uma saia dela na mão e suspirei. Como eu iria explicar pra ela de uma forma que ela me entendesse? – Eu não fico suspirando. Eu nem acredito que dez por cento das coisas que eu leio sejam até remotamente possíveis de se tornarem reais, mas é legal imaginar, entende?
– Não. – ela tirou os meus sapatos e os jogou no topo da pilha de roupas – Eu posso pegá-los emprestado essa noite, certo?
– Há alguma coisa que eu possa fazer sobre isso? – indaguei, já sabendo a resposta.
– Claro que não! – Loren me disse, naquele tom zombeteiro que ela parecia usar sempre, não importava qual a situação.
Ficamos em silêncio por um tempinho, enquanto eu pensava em Crepúsculo. Eu agia uma idiota cada vez que relia a série, sempre relembrando as cenas, literalmente suspirando pelos cantos – por menos que eu gostasse de admitir.
Nessas horas, eu tinha que concordar com a Loren. Aquilo não me fazia muito bem.
– Com quem você vai sair hoje? – resolvi perguntar, por puro hábito. Naquelas férias, minha irmã tinha saído com uns dez caras diferentes, e nunca rolava nada além de uns beijos vez ou outra. Ela era super descolada e totalmente não-adepta ao conceito de se apegar a alguém. Pra ela, já era o fim do mundo que eu estivesse namorando.
Embora eu tivesse que concordar com ela sobre isso.
– Com o meu professor de informática! – ela disse, animada – Sabe, ele me lembra o Pablo. Toda aquela cara de nerd fofinho e coisa e tal. Eu o acho um encanto.
– Tomara que dure até depois da meia-noite. – ironizei, e ela riu e me atirou um ursinho de pelúcia que estava no chão, ao lado da cama.
– Falando nisso, e você e o Pablo? Vão ficar nesse chove-não-molha até quando?
– Não tem chove-não-molha nenhum.
– Corrigindo, então: quanto tempo mais você vai demorar pra dar um fora nele?
– De amanhã não passa. – respondi, de cabeça baixa. Loren parou sua seção prova de roupas e veio se sentar na beira da minha cama, com uma mão sobre o meu joelho.
– Você diz isso já tem semanas, Laurinha. – ela me deu uns tapinhas que deveriam ser encorajadores – Quanto antes você fizer isso, melhor. Eu não sei o que você está esperando.
– Eu não quero magoá-lo, Loren.
Como já era esperado, Loren abanou as mãos para o ar e rolou os olhos, sem compreensão nenhuma do tamanho da minha agonia. Se ela soubesse como era difícil terminar com um cara depois de tanto tempo, ela poderia me ajudar. Mas não. De todas as irmãs do mundo, eu tinha que ter a única que nunca ficou com ninguém por mais de duas noites seguidas.
– Olha, me faça um favor, ta legal? – ela pediu, se levantando de novo – Quando você terminar com esse garoto, vai sair mais comigo e não vai arranjar outro gato fixo por um bom tempo.
– “Gato fixo” não é bem como eu imagino os garotos por quem eu me apaixono, Loren. – afirmei, com uma pontada de irritação.
– Paixão tem que ser como as minhas, rápidas e fáceis.
– Eu nem vou responder.
Ela riu, e eu não pude resistir acompanhá-la. Logo a conversa morreu e, lentamente, acompanhei e opinei no longo processo que era Loren escolhendo uma roupa. Quando ela saiu, já estava escurecendo, e meu coração começava a pesar de novo.
Ela estava certa, é claro. Mamãe estava certa, todo mundo estava certo. Pablo tinha se tornado um problema pra mim, algo que estava me impedindo de ser feliz, e eu tinha que resolver aquilo depressa. Na segunda-feira, prometi a mim mesma, eu iria fechar os olhos na hora do intervalo, ignorar sua carinha triste e soltar logo o que eu tinha pra dizer.
Não ia ser fácil. Não ia ser nada fácil.

Eu estava quase dormindo quando o meu celular vibrou sob o meu travesseiro. Abri os olhos, irritada, e peguei o celular, forçando os olhos para enxergar as letrinhas no visor do aparelho.
Pablo. Às onze da noite, no domingo que precedia a volta às aulas. Ele devia estar realmente incomodado com alguma coisa. Ou talvez ele estivesse me ligando pra dizer que queria terminar comigo. Tornaria as coisas muito mais fáceis.
Eu fiquei um bom tempo sem saber se atenderia ou não a ligação. Eu já o tinha ignorado tantas e tantas vezes ao longo do dia que eu não achava que faria mal fazê-lo novamente. Amanhã, quando eu falasse tudo – se eu falasse, completei mentalmente – Pablo ia entender e tudo ficaria bem. Não havia necessidade de atender um telefonema àquela hora da noite.
Mas ele era insistente. Muito insistente. Qualquer garoto normal já teria desistido. Qualquer cara que se preze já teria desistido de ligar pra mim e tentaria o número de outra garota. Mas de todos os garotos da minha escola, eu fui namorar justamente aquele que grudava pra nunca mais desgrudar. Eu estava mesmo feita na vida.
– Alô? – atendi, com uma voz sonolenta meio falsa, meio verdadeira. Eu estava com sono, mas não tanto quanto eu estava fingindo.
– Laurinha, eu te acordei? – Pablo quis saber. Ele tinha a voz chorosa, sempre baixa, como se estivesse sempre sofrendo. Eu vinha trabalhando isso nele desde que havíamos começado a namorar, mas quando começou a me irritar demais eu simplesmente parei de tentar.
– Mais ou menos. – falei, sem nem pensar no que eu estava dizendo. Suspirei e resisti ao impulso de dizer a ele que parasse de pegar no meu pé – Você não deveria estar dormindo? Nós temos aula amanhã.
– Eu não consigo dormir. – sério? Eu também não.
– E o que eu tenho a ver com isso, Pablito?
– Eu tentei falar com você o dia todo, mas você nunca estava, e eu liguei pra Keyla e você também não estava lá, e…
– Você ligou pra Keyla? – nem eu conseguia acreditar. Keyla era a minha melhor amiga, mas nem ela tinha que aturar o desespero desmotivado do meu namorado. O que ele estava pensando?
– Desculpa. – pediu, sentindo a descrença raivosa na minha voz – Eu fiquei teimado com isso, Laurinha, porque parecia que você não queria falar comigo…
– Não, é que eu… – bufei. Eu não podia mais dar desculpas, simplesmente não podia. Não era certo. Então voltei atrás e cortei de uma vez – Nós nos falamos amanhã, ta bem? Quando eu não estiver de pijama tentando dormir.
– Tudo bem. – concordou. Pablo me dava nos nervos até com a sua mania de sempre concordar com tudo. Não brigar era ótimo, claro. Mas namorar alguém sem opinião própria era deprimente.
– Boa noite.
Não esperei que ele dissesse nada e não falei o cotidiano “amo você”, tão sem sentimento nos últimos tempos. Às vezes eu tinha a impressão de que eu apenas falava pra não deixá-lo naquele silêncio horroroso pós-declaração, pra que ele não se sentisse incomodado e começasse a reclamar e ficar triste. Eu me preocupava demais com a sensibilidade do Pablo pra minha própria sanidade. Não era nada saudável.

Quando amanheceu, meu telefone começou a soar o alarme. Eu tinha essa mania de dormir com ele debaixo do travesseiro, a despeito de todos os alardes da minha mãe, sobre como era perigoso fazer isso. Era o único modo de eu acordar com o alarme sem ter que acordar Loren também.
Tentei me mexer praticamente em silêncio, mas assim que abri os olhos percebi que não era necessário: Loren não estava em casa. Sua cama estava tão desarrumada quanto estivera na véspera, e eu preferia não dar palpites sobre onde ela passara a noite. Ao invés disso, preocupei-me em pegar uma muda de roupa e ir tomar banho.
Enquanto lavava o cabelo, ficava repetindo para mim mesma as várias formas de dizer o que eu queria com delicadeza.
“Pablo, você é muito especial e eu realmente gosto de você, mas não do mesmo jeito.”
Estava péssimo. Ele provavelmente iria me interromper no “realmente gosto de você” pra dizer que gostava de mim também e que adorava me ouvir dizendo isso, e eu acabaria desistindo. Reformulei a frase.
“Pablo, você é muito especial pra mim, mas eu não acho que eu gosto de você do mesmo jeito.”
Hm, não. Conhecendo o Pablo, ele faria cara de cachorro perdido e me diria que ele entendia que eu estava confusa, que ele ia me ajudar a passar por isso, e que juntos nós iríamos passar por mais essa batalha e não sei mais o quê. Melhor tentar de novo.
“Pablo, você é muito especial pra mim, mas eu não gosto mais de você como antes.”
Ainda assim ele faria cara de cachorro perdido e ia me implorar pra repensar. Mas que coisa!
“Pablo, eu não agüento mais olhar pra sua cara e eu já to cheia de ser a sua namorada. É, eu estou terminando com você. Tchau.”
Assim seria melhor, à prova de dúvidas e de tempo pra caras de cachorro perdido. Mas seria como enfiar cem facas no peito magrelo dele, e eu realmente não queria isso. Pablo podia ter se tornado um desagradável grudento nos últimos meses, mas eu não estava mentindo quando dizia que ele era muito especial pra mim. Tínhamos vivido tempos legais juntos, e eu não me esquecia de nada disso.
Talvez seja por isso que nem refazendo a frase dez vezes durante o banho eu tenha conseguido chegar a algo decente pra dizer. Enquanto colocava o uniforme do colégio, me convenci de que não havia certo ou errado quando a matéria era não machucá-lo: ele iria se magoar de qualquer maneira. Eu apenas tinha que ignorar sua carinha de cachorro perdido daquela vez.
Mas só de lembrar, já me enchia de um misto de raiva e agonia, porque parecia que ele fazia de propósito. A carinha, eu quero dizer. Ele sabia que eu não suportaria vê-lo sofrer e faria qualquer coisa pra que ele não se chateasse, e por isso lançava aqueles olhos pidões pra mim. Não era justo.
Depois de enfiar uma camiseta branca gasta com o logotipo do colégio e uma calça jeans surrada que eu usava todo santo dia na escola, peguei minha mochila, meu fichário e desci para tomar um café da manhã rápido, toda hora repetindo na cabeça as diversas formas de terminar de vez o meu namoro. Nenhuma delas parecia boa o suficiente.
Engoli um copo de café com leite e um pão murcho com manteiga, joguei a louça suja na pia e peguei as chaves de casa. Eram quase sete e dez da manhã quando saí, com um leve tremor de frio. Meu corpo ainda estava quente e aquela manhã, como praticamente todas desde que eu me entendia por gente, estava fria.
Andei a passos curtos e rápidos, respirando o ar gelado e olhando a paisagem bonita e calada das ruas de São Joaquim. Eu precisava de pouco mais de dez minutos para chegar ao Colégio Paradigma, onde eu estudava, mas sempre desviava do caminho para passar na casa da minha melhor amiga, Keyla. Ela morava na rua atrás da minha, e nós sempre íamos juntas pra escola.
Cheguei à frente da casa dela em questão de minutos. Os pais de Keyla tinham a mania de sempre encontrarem algum defeito na casa, razão pela qual eu não conseguia me lembrar uma só vez nos últimos seis anos em que eu a conhecia em que sua casa não estivesse em reforma. Quando acabava o dinheiro, eles simplesmente paravam, como era o caso. Desde setembro do ano anterior, a frente da casa estava com apenas metade dela reformada e o jardim estava completamente destruído, esperando para ser consertado. A janela da sala ainda era uma série de tábuas pregadas para não deixar um buraco no lugar.
Bati palmas três vezes assim que cheguei, nosso código secreto para que Keyla soubesse que eu estava ali sem que eu tivesse que gritar ou tocar a campainha. Ela apareceu na porta com um pão na boca, pedindo pra que eu esperasse, e eu concordei. Cinco minutos depois ela estava de volta, correndo apressada com a mochila pendendo num braço e meio pão ainda na boca.
– Não precisa sair correndo, hoje é só o primeiro dia! – exclamei, rindo dela. Ela tirou o pão da boca e engoliu um pedaço.
– Não quero chegar atrasada, você sabe. – falou, e eu ri de novo. Eu sabia, e como sabia. Era graças a ela que eu nunca faltava ou chegava atrasada. Keyla era especialmente boazinha e certinha em tudo o que fazia.
Ela saiu e trancou o portão e começamos a andar em direção à escola. Eu deixei que ela comesse, tentando acompanhar seu ritmo rápido de andar. Era sempre difícil, apesar de fazer isso há tantos anos.
Passados alguns minutos de silêncio, ela olhou pra mim com os olhos semi-cerrados: o jeito dela de demonstrar preocupação. Devolvi o olhar sem dizer nada, simplesmente porque não conseguia: na minha cabeça, eu ainda repassava as 300 formas diferentes de dizer ao Pablo que eu estava terminando sem deixar que ele se machucasse (muito).
– Você está quieta. – Keyla declarou, respirando fundo. Eu não entendia como ela conseguia praticamente correr e ainda manter a respiração tão calma daquele jeito.
– Eu estou pensando. – falei, com a voz soando distante até mesmo para mim. Tentei respirar fundo também, mas o ar gelado pareceu cortar o meu nariz por dentro e desisti.
– Sobre o quê? – ela quis saber. Mordi o lábio antes de dizer alguma coisa.
Porque Keyla desaprovava o meu namoro desde o início. Ela me dizia que já podia ver no que ia dar, que eu ia acabar ficando de saco cheio e magoando o garoto, e que no fundo eu não gostava dele, que namorar desse jeito era errado. Por isso, eu já sabia o que ela iria me dizer, do mesmo jeito que já sabia que ela tinha certeza sobre a razão do meu silêncio antes mesmo de perguntar.
Mas eu não poderia simplesmente virar pra ela e dizer “estou cansada” ou “voltaram as aulas” ou qualquer outra mentira boba pra desconversar. Não era o fato de a Keyla ser minha amiga; era engraçado, mas alguma coisa nela simplesmente tornava impossível mentir ou disfarçar. Eu não conhecia uma única pessoa naquela cidade que conhecesse a Keyla e a tivesse enrolado alguma vez. É só olhar pra ela que a verdade simplesmente pula da nossa boca.
Por isso eu bufei e nem tentei dizer o contrário quando abri a boca pra falar e soltei:
– É o Pablo.
Ela me olhou por alguns segundos antes de dar de ombros.
– Eu não preciso e nem vou dizer “eu te disse”. Isso não vai resolver nada. – Keyla me disse, já adivinhando tudo.
– Obrigada.
– Quando vai ser?
– Hoje. Eu acho. Estive pensando nisso a noite toda, num jeito de dizer, sabe?
– Não tem jeito certo de fazer isso. Apenas seja honesta.
Honestidade. Se eu fosse honesta, Pablo ficaria tão magoado que não seria surpresa se eu o visse se atirando de uma ponte com uma pedra amarrada no pescoço. Ele era muito exagerado, e eu tinha que ter cuidado com a escolha de palavras toda vez, por qualquer coisa. Agora seria ainda mais complicado. Ser honesta e direta não estava nem de perto nos meus planos.
Eu não disse isso em voz alta, mas acho que Keyla entendeu o recado. Ela balançou a cabeça, e então viramos na esquina da rua do colégio. Ela parou a uns cinco metros do portão e virou-se de frente pra mim.
– Eu sei o quanto você se preocupa com ele, e eu realmente admiro isso em você. – ela falou, pondo uma mão sobre a minha – Mas se você não for honesta, mesmo que isso o faça sofrer, essa história só vai ficar mais longa. Diga o que você tem a dizer, certo? Diga ao Pablo que ele… que ele vai sofrer mais e te fazer sofrer se ficarem juntos. Eu não sei. Diga a verdade e o faça entender.
Assenti, sem conseguir evitar o pensamento raivoso de como era fácil pra ela falar. Eu devia experimentar colocar Keyla e Pablo numa gaiola de interação direta pra ver se ela se sairia tão bem na prática quando é na teoria. Enquanto entrávamos no colégio, só pude pensar como teria sido mais prático dar o fora nele pelo telefone, ou por correspondência. Qualquer coisa que eu pudesse fazer ser olhar pra ele, ou que fosse fácil de ser ignorado caso ele decidisse responder.
Eu estudava no Paradigma desde a primeira série, mas aquela era a primeira vez que passar pelos seus portões realmente me causava um arrepio que vinha de dentro pra fora. Pablo já devia estar lá, mas eu não tinha certeza se falava agora ou se deixava pra quando a aula acabasse. O que seria pior, cinco horas de aula com ele sendo meu namorado ou cinco horas tendo que tolerar a sua carinha triste? Difícil dizer.
Quando um par de mãos cobriu os meus olhos, eu já sabia dizer quem era. Bufei e tirei as mãos dele de lá, já sem paciência pra entrar no clima das suas brincadeiras. Quando me virei, Pablo estava sorrindo pra mim, como sempre.
O problema é que eu não suportava mais ver aquele sorriso. Eu o achava bobo e infantil agora, pendurado no rosto dele sem mais me fazer sorrir de volta. Ele abriu os braços e me puxou pra um abraço apertado sem esperar que eu desse algum sinal de retribuição.
Devolvi seu abraço sem nenhum entusiasmo, por pura educação, com um tapinha nas costas pra enfatizar o fato de que seria melhor ele ter mantido a distância. Mas quando ele se inclinou pra vir tentar me beijar, eu desviei e me afastei.
A mudança no rosto dele foi imediata, mas eu tentei me manter forte, impenetrável. Primeiro ele pareceu confuso, torcendo o nariz e enrugando a testa, fazendo os óculos ficarem tortos na casa. Então a expressão foi relaxando aos poucos, até que ele parecia ter sido atingido por um meteoro no meio da testa.
– Nós precisamos conversar. – afirmei, antes que a cara de cachorro perdido viesse – É sério, Pablo.
– Eu sabia, eu sabia que tinha alguma coisa! – Pablo exclamou, com a voz tristonha – Eu percebi porque você não me atendeu quando eu liguei e parecia brava quando me atendeu ontem à noite e…
– É claro que eu estava brava! Você tem noção da hora em que você me ligou? Eu estava quase dormindo!
– Tem razão. Desculpe. – ele suspirou, parecendo derrotado – Sobre o que nós temos que conversar?
Balancei a cabeça e olhei em volta, procurando algum lugar mais vazio. Não havia. Embora a população estudantil fosse pequena, todo mundo tinha a mania de se aglomerar no mesmo lugar. Teria que ser ali mesmo.
– Pablo, eu… – droga, onde estavam todas as minhas frases montadas agora? – Eu quero terminar.
Olhei pras minhas próprias mãos trêmulas enquanto falava, e me arrependi profundamente ao erguer os olhos e encontrar a expressão facial que eu mais odiava nele. Os lábios caídos, os olhos grandes, as sobrancelhas erguidas, os ombros pra baixo como se mal conseguisse se manter de pé. Naquele segundo, desejei ter ficado de boca fechada. Meu estômago pareceu vir parar na boca, tamanha foi a repulsa que eu senti de mim mesma por machucá-lo daquela forma.
– Por quê? – foi tudo o que ele disse.
Eu já tinha ouvido aquela pergunta vezes e vezes mais. Às vezes, não acreditava em como era possível que ele não percebesse. Será que Pablo realmente não notava o que me incomodava nele? Será que ele nunca ia se tocar que o que o afastava de mim era o fato de ele ser tão incrivelmente apaixonado, dependente e… grudento?
Mas quando eu fui dar as minhas razões, o sinal tocou, e fomos interrompidos por uma enxurrada de pessoas indo em direção às suas salas. De longe, vi Keyla me olhar como se quisesse me forçar a continuar falando e ao mesmo tempo me dando força.
E eu não sei o que me deu. Eu realmente não sei o que me deu, mas quando eu olhei pro Pablo de novo, tão absorto em sua tristeza quanto um mocinho de cinema, eu simplesmente amarelei. Peguei na mão dele e sussurrei um “continuamos mais tarde” e o arrastei comigo para a nossa sala.
Dentro da minha cabeça, eu cantarolava maldições à minha própria vida. Existia mais alguma garota tão totalmente idiota quanto eu nesse mundo? Não era Pablo quem não me merecia: era eu quem não o merecia. Primeiro porque eu o estava machucando mais desse jeito, e segundo porque eu não parecia conseguir ser honesta com ele. Não sem me arrepender e estragar tudo depois.
Fui afundando na cadeira à medida que a aula passava, com Pablo atrás de mim, tão obviamente me encarando que dava pra sentir o olhar dele penetrando a minha pele.
E não era nada legal.

Quando o sinal anunciou o intervalo, fiz sinal à Keyla pra que ela me encontrasse no banheiro feminino e deixei a sala o mais depressa que pude, tentando não ligar pro fato de que Pablo vinha logo atrás de mim. Lá dentro, me espremi contra a parede pra que ele não me visse – como se mudasse alguma coisa! – até que Keyla entrou e me olhou, preocupada.
– O que aconteceu? – ela quis saber – Você falou com ele?
– Falei. – eu disse, soltando o ar devagar. Parecia que eu tinha alguma coisa presa na garganta.
– Graças a Deus. Como foi?
Eu tive vontade de chorar ao escutar essa pergunta. Porque eu queria sinceramente poder dizer a ela que tinha sido difícil, mas que estava feito, que eu tinha terminado e que ia ficar tudo bem. Mas ao invés disso, eu baixei os olhos, mordi o lábio inferior e soltei justamente o contrário:
– Não foi.
– Ah, não, Laura. Como assim não foi?
– Não foi, Keyla. Estava indo tudo bem, eu juro. Ele sequer estava discutindo, apenas perguntou por que, mas ai eu…
– “Olhei pra ele e simplesmente não pude”. – Keyla completou minha frase com perfeição, sem tirar nem pôr uma única palavra. Eu suspirei, e ela me lançou um olhar repreensivo – Você já me deu essa desculpa umas cem vezes, Laura.
– O que eu posso fazer, Keyla? – indaguei, cobrindo o rosto com as minhas mãos suadas de tão nervosa que eu estava – Eu disse a ele que iríamos conversar mais tarde, mas eu sei no que isso vai dar!
– Laura, pelo amor da minha Virgem Maria, você é mais forte do que isso! – Keyla bufou – Eu sei que você é uma pessoa boa, e sei também o quanto você detesta fazê-lo sofrer desse jeito, mas ele não está mais feliz com você do que estaria sozinho.
– Talvez você esteja certa, mas quando eu vejo aquele olhar no rosto dele eu me sinto a pior pessoa do mundo!
– Mas você não é. – ela pôs as mãos sobre os meus ombros e me balançou de leve – A sua felicidade também conta. Eu sei que você é forte o suficiente pra fazer o que é certo.
Eu apenas fiz que sim e fiquei em silêncio. Virei o rosto pra não ter que encará-la nos olhos e dei de cara com o meu reflexo no espelho, parecendo tão abatido e derrotado que eu imaginei se era só eu ou se todos me viam daquela maneira. Era vergonhoso.
Quando saímos do banheiro, não havia mais ninguém no corredor ou nas salas de aula do nosso andar. Keyla disse que ia comprar alguma coisa pra comer, e eu nem precisei dizer a ela que ia me refugiar na nossa classe, pra não ter que ver Pablo de novo. Entrei e acendi a luz, e tão logo o fiz, tomei um susto.
Tinha alguém na sala. Não era o Pablo – graças a Deus – nem um funcionário da escola nem ninguém que eu conhecesse, pra ser mais exata. Mas sim um garoto cujo rosto eu não podia ver, porque ele estava debruçado sobre a mesa, dormindo. Um garoto que não estivera presente nas primeiras aulas do dia.
Me apressei a apagar de novo a luz enquanto ia com todo o cuidado do mundo até a minha carteira. Não queria que ele acordasse. Não queria que ele olhasse pra minha expressão derrotada, nem queria que aquele silêncio incômodo que sempre paira entre duas pessoas que não se conhecem pairasse sobre nós. Era melhor que ele dormisse.
Eu o ouvi dar um ronco silencioso, fraco, seguida de um suspiro abafado. O que eu podia ver com a claridade que vinha de fora era que o garoto era moreno – muito moreno. Do tipo que se via no Rio de Janeiro, não ali no meio da Serra Catarinense. Ele era tão moreno que parecia ter dormido no sol e acordado com um bronzeado fantástico. Seus cabelos eram bem escuros e ele aparentemente era imune aos poderes mágicos do clima da cidade mais fria do país. Porque ele vestia apenas uma camiseta, uma bermuda e um par de tênis.
Eu estava sentada, olhando distraidamente para o garoto estranho na fileira ao lado, quando ouvi passos do lado de fora e virei a cabeça tão rápido na direção da porta que meu pescoço estalou. Vi a cabeça de Pablo aparecendo e não pensei duas vezes antes de me sair por baixo da carteira numa manobra dolorida e me agachar no chão, atrás das carteiras e das mochilas.
Pablo abriu a porta e acendeu a luz. Eu não estava nem olhando pra que não houvesse a menor chance de ele me ver quando o escutei dizendo, com a voz desanimada:
– Ah, desculpe.
– Tudo bem, cara. – uma outra voz, grave e masculina, tão masculina que me deixou arrepiada, disse. Só percebi que se tratava da voz do garoto estranho quando me lembrei de que não havia mais ninguém na sala.
– Uma garota de cabelo castanho passou por aqui? – Pablo perguntou. Eu esperei, ansiosa, pelo momento em que o garoto diria que não. Ele sequer tinha me visto.
– Ah, sim, ela se escondeu atrás da carteira. – falou, contudo.
Fiquei paralisada por um segundo ou dois, e logo eu só senti meu rosto ficando vermelho, milhares de xingamentos me vindo à cabeça. Que filho da mãe.
Sem escapatória, me levantei. Pablo estava olhando para mim, parecendo cada vez mais desolado. Sequer olhei para o lado, onde o garoto estranho parecia assistir a tudo.
– Se não queria falar comigo, só precisava falar. – Pablo me disse. Eu tentei ir até ele, mas bati o joelho na carteira. Tinha esquecido onde eu estava.
– Pablo, não é isso. – falei, em vão. Era exatamente isso – Por favor, não dificulte as coisas.
– Laura, não tem que ser assim! – exclamou, na sua voz chorosa, e veio até mim, ficando a apenas uma carteira de distância – A gente se gosta tanto!
– Pablo, não é que eu não goste de você, é só que… não é mais a mesma coisa.
– Então me diz o que eu posso fazer pra que seja de novo a mesma coisa. Eu faço qualquer coisa que você pedir.
Eu queria chorar e sair correndo, queria poder fazer algum tipo de lavagem cerebral nele pra que Pablo entendesse que não tinha mais jeito. Ao invés disso, eu estava ali parada, me sentindo completamente indefesa, sem coragem de dizer mais uma só palavra, ainda tendo que agüentar uma platéia que emitia um som muito parecido com… risadas.
Lancei ao garoto um olhar fulminante. Ele não pôde ver. Estava ocupado demais com o rosto entre as mãos, se acabando de dar risada de mim.
– Nunca mais vai ser a mesma coisa. – eu declarei, com a voz rouca – Me desculpe, Pablo. Você é muito especial pra mim, mas o nosso namoro acabou.
– Laura… – começou a dizer, mas eu o interrompi dando as costas a ele.
– Acabou.
O sinal tocou, e logo a sala começou a se encher de gente. Pablo se sentou, e eu também o fiz. O garoto ainda ria, mesmo quando o professor entrou em sala.

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