Conto: Luiza (parte II)

Não leia a parte II sem antes ler a parte I.

Quando voltei, dois dias depois, ela estava ali, no mesmo lugar, desta vez desenhando um táxi estacionado na outra extremidade da praça. Os olhos compenetrados por detrás dos óculos não repararam quando eu parei a bicicleta e me sentei num banco mais ou menos de frente pro dela. Por um tempo, fiquei só escutando música e observando ela desenhar. Ela era muito bonita. Sua testa se enrugava de concentração enquanto ela desenhava, e ela era inquieta, mudando sempre de posição, como se o sentar a incomodasse. Quando já tinha passado tempo demais fazendo papel de idiota, peguei minha bicicleta e fui embora.

Devia ser coisa das férias, de não ter mais o que fazer, porque, dois dias depois, eu voltei pra praça pra ver se ela estava lá. Pedalei todos os dois quilômetros de casa até aquela maldita praça, considerando me intoxicar de vez com um segundo cachorro quente venenoso, mas, a primeira coisa que eu reparei naquele dia era que ela não estava lá.
E tinha um monte de coisas pra reparar. Afora o carrinho do cachorro quente, tinha uma senhora passeando com três cachorros, uma viatura de polícia parando cinco motoqueiros, e uma mãe brincando com a filha. Mas a única coisa que eu reparei era que ela não estava lá.
Mas eu tinha pedalado pra cacete e estava cansado, então parei a bicicleta e sentei mesmo assim. Não tinha a menor esperança de que ela aparecesse. Não sabia nem porque tinha vindo. Talvez eu simplesmente gostasse de olhar enquanto ela desenhava – ou talvez fosse porque eu já tinha zerado 8 em 10 jogos de Xbox que eu tinha em casa, e estava ficando sem opções pras ultimas semanas de férias. Talvez fosse isso.
De qualquer jeito, tomei um puta susto quando ela se sentou do meu lado com seu material de desenho – um estojo e dois blocos de desenho – como se fosse a coisa mais natural do mundo. Ela sorria um pouquinho, e parecia estar se divertindo com a minha cara de “o que você ta fazendo aqui?”
– Não existe uma lei sobre perseguir pessoas? – ela perguntou, a ninguém em especial, enquanto abria um dos blocos e folheava em busca de uma página em branco – Ouvi dizer que é crime.
– Só se você prestar queixa. – respondi, ainda meio abobalhado.
– Bom saber disso.
Silêncio, enquanto ela mordiscava um lápis e varria a praça com olhos atentos. Pousou os olhos na batida policial e a estudou por alguns minutos antes de fazer os primeiros traços.
– Você vem aqui todo dia pra desenhar? – perguntei, só pra puxar assunto. Ou porque estava curioso. Ou pelas duas coisas.
– Se eu responder, quer dizer que você vai me seguir até aqui todos os dias? – ela me respondeu com outra pergunta, e eu quase recuei diante daquele enorme tabefe de “não é da sua conta”. Mas algo me dizia que ela estava fazendo aquilo só pra encher o meu saco e pra que a conversa não fosse fácil demais. O velho joguinho de se fazer de difícil.
– Pode ser. – dei de ombros, fazendo de conta que não estava nem ai – Você desenha bem.
Ela me olhou por um mísero instante que não deve ter passado de um segundo. Em um segundo, eu a vi sorrir. Então ela voltou a baixar a cabeça pro desenho.
– Obrigada.
Mais alguns minutos sem que ninguém dissesse nada. Vi um carro perfeito e algumas motos meio tortas aparecendo no papel. Ela não era muito boa com motos. Deve ter percebido que eu estava olhando, porque justificou:
– Nunca desenhei motos antes. Elas são complicadas. Muitos detalhes.
Concordei, mas não saberia. Nunca tinha reparado. Eu não era muito observador. Geralmente eu só batia o olho e via o conjunto.
– Você vem sempre perseguir uma garota ou posso tomar isso como um elogio? – ela perguntou, em tom de brincadeira, ironizando minha primeira pergunta. Dei uma risadinha e cocei o rosto, onde a barba pinicava, começando a crescer de novo.
– Eu venho pedalando de vez em quando pra comer o cachorro quente.
– Ah, sim. – ela olhou pro carrinho de cachorro quente e fez uma careta repulsiva – Comida saudável.
– Não fale do que você não sabe! Aposto que eu tenho uma imunidade muito maior que a sua só de enfrentar aquele cachorro quente!
– Ou isso, ou tem um sistema digestivo de ferro!
Nós dois rimos, e enquanto isso ela passava pras pessoas. Desenhou o policial parado em frente à viatura, com todos os mínimos detalhes da roupa, da sombras, das dobras. Ela era muito boa naquilo.
– Qual é o seu nome? – perguntei, insistindo pra mim mesmo que só queria saber porque era muito estranho conversar com uma pessoa sem saber o nome dela. Nada mais que isso.
E talvez porque ela tinha uns olhos muito bonitos. E um rosto bonito. E uma boca bonita. E cabelos bonitos.
Saco.
– Qual o seu? – ela inverteu a pergunta. Que mania que tinha de ficar fazendo aquilo! Não podia simplesmente responder e pronto?
– Diogo.
– Nome legal.
– O seu também.
– Eu não te disse o meu nome. – ela parou de desenhar e me lançou um olhar enviesado, como se desconfiasse que eu tivesse magicamente adivinhado o nome dela.
– É um palpite. – dei de ombros de novo. Esperava que aquilo fosse solucionar alguma coisa, mas ela só sorriu e voltou a desenhar, rindo baixinho da minha brincadeira.
Ela continuou desenhando mesmo depois que os motoqueiros foram embora, e até os caras entrarem na viatura. Ao todo, ficamos ali durante duas horas, praticamente em silêncio. Então ela recolheu suas coisas, ajeitou os óculos redondos no rosto, e me deu um tchauzinho.
– Tchau, Diogo.
Foi tudo o que ela me disse. Fiquei olhando, entortando a cabeça pra tentar adivinhar pra onde ela estava indo, mas a perdi na primeira esquina. Então peguei minha bicicleta e fui embora também.

[continua]

3 thoughts on “Conto: Luiza (parte II)

  1. Ahh, agora sim! Gostei mais dessa parte… Gostei q ele não agiu como se tivesse revoltado com tudo rs. Nessa parte, eu achei o conto mt mais verossímil. Continua, to adorando ^^
    xoxo

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