Conto: Luiza (parte IV)

Antes de ler essa parte, leia também a parte 1, parte 2 e parte 3.

No dia seguinte, tudo o que eu mais queria era ir até a praça. Comer cachorro quente, quis me convencer, mas no fundo, o rosto dela era a primeira coisa que me vinha à cabeça. Mas não dava tempo. Era sábado, e sábado era dia de ensaio. Peguei minha guitarra e desci os três quarteirões de distância entre a minha casa e a casa do Cadu, um dos meus melhores amigos, cuja garagem era conhecida por estúdio pra nossa banda iniciante.
Quero dizer, não iniciante. Já estávamos juntos e tocando havia quase um ano, mas faltava alguma coisa. Faltava um pontapé que nos tirasse do ramo de bandas cover de qualquer banda famosa, e nos jogasse pro campo de bandas que tocam suas próprias músicas. Bandas que têm criações próprias, bandas que tocam músicas dos outros só pra aquecer.
Mas eu era um dos guitarristas e o vocalista, e até então, minha criatividade tinha sido nula. Eu não era muito bom com as palavras de um modo geral. Quando tinha pintado a idéia de montar uma banda, achei que escrever as letras seria uma parte fácil. Mas não era verdade. Pra escrever alguma coisa, você tinha que sentir. E eu não estava sentindo nada.
Por isso, quando entrei na garagem e encontrei meus companheiros de banda afinando seus instrumentos, estava repassando mentalmente o nosso “set list” do dia. Cada um gostava de uma coisa, então, todo ensaio, a gente tocava de tudo. Íamos começar com Cazuza naquela tarde.
Com o Cadu no baixo, eu e o Mané (nem pergunte!) nas guitarras e o Tatu na bateria, tocamos a tarde inteira. A tarde inteira, fiquei me perguntando o que a Luiza estaria desenhando na praça.
Luiza. Eu gostava do nome dela. Do som do nome dela. Dava pra fazer uma música inteira só sobre isso.

Fiquei com isso na cabeça. Com a idéia da música, quero dizer. Me parecia uma boa idéia. Não por ser com ela, claro que não. Mas, sabe, se eu conseguisse, seria um começo pra banda. Um começo pra realmente sairmos do chão e tal.
Mas eu só conseguia pensar na melodia, e nos primeiros acordes. Sentei diante do velho piano de parede da sala, e o encarei como se esperasse que ele me dissesse a resposta. Toquei uma, duas, três notas. Quatro, cinco, seis. Repeti, então mudei as notas, mudei o ritmo, mudei a seqüência. Quando acreditei que tinha encontrado a coisa certa – mentalmente, eu até conseguia escutar os acompanhamentos – repeti as mesmas notas até decorar tudo. Então peguei as costas de uma partitura meio acabada e anotei o que tinha acabado de fazer.
Bom, eu tinha o começo da música. Sem continuação e sem letra, mas era uma coisa minha, uma coisa pra banda. Era melhor do que nada.
Quando deu o meu horário – e eu me senti meio ridículo por pensar desse jeito – peguei a bicicleta e fui pra pracinha, dizendo pra minha mãe que ia jogar bola com os caras. Eu não estava nem pensando em jogar bola. Tinha dado a maior topada com o dedão no pé da cama e não conseguia chutar nem o ar. Pedalar estava sendo difícil. Mas eu precisava vê-la.
Idiota.
Quando eu cheguei na praça, cheia por ser domingo, por um momento achei que ela não fosse estar ali. Considerei ir embora, porque estava sendo muito idiota de ficar voltando ali todos os dias só pra ver uma garota que obviamente não queria papo comigo. Ou será que queria? Tinha horas que ela até arriscava fazer uma pergunta. Tudo bem que ela quase nunca prestava a mínima atenção em mim, enquanto eu estava pedalando 2km por São Paulo todos os dias só pra estar na companhia dela, mas talvez isso não quisesse dizer nada. Talvez fosse o jeito dela mesmo.
Além do mais, independentemente de qual fosse a justificativa pra ela agir de um modo tão hostil às vezes, a verdade era que eu até gostava. Fazia parte do charme que eu não conseguia explicar, porque não era algo voluntário. Ela simplesmente era e pronto. Era um inferno, e aquela garota estava entrando na minha cabeça de um jeito como ninguém (além daquela professora sexy de matemática do sétimo ano) tinha entrado até hoje. Nenhuma das garotas com quem eu tinha ficado, nenhuma das garotas de quem eu já tinha ficado afim, ninguém tinha o charme que a Luiza tinha. O charme indiferente. O charme que não prestava atenção ao Diogo.
Então, é, talvez essa teoria de que se fazer de difícil dá certo seja mesmo verdade.
Eu já estava considerando a idéia de ir embora, mesmo a contragosto, quando alguém me cutucou nas costas. Me virei e dei de cara com ela, sobrancelha arqueada, cabelos bagunçados, alta o bastante pra chegar na altura do meu ombro (o que é bastante, porque eu sou bem alto!). Dessa vez, tinha trazido só um dos blocos de desenho, e um lápis, que estava atrás de uma das orelhas. Ela sorriu ao me dar oi e as covinhas apareceram nas suas bochechas, imediatamente me fazendo sorrir também.
Qual era o problema comigo? E pior, qual era o problema com ela?
– Você não veio ontem. – ela apontou um banco, e eu empurrei a bicicleta atrás dela. Ela se sentou, e, após travar o guidão da bicicleta como de costume, me sentei ao lado dela.
– Tive que ensaiar. – respondi, mesmo que ela não tivesse feito uma pergunta. Internamente, fiquei feliz com a possibilidade de aquela afirmação significar que ela tinha sentido a minha falta.
Babaca.
– Ensaiar o quê? – ela abriu o bloco, passando por uma série de desenhos que eu não tinha visto antes. Me olhou brevemente, então passou os olhos pela praça, à procura de um modelo.
– Com a minha banda.
– Ah, você tem uma banda? – alguma coisa no seu tom de voz indicava que ela achava aquilo divertido. Não de um jeito bom.
– Tenho.
– E o que você faz nela?
Travei momentaneamente. Pouquíssimas pessoas sabiam que eu era o vocalista. Eu não achava que tinha a melhor voz do mundo, mas também não era mal. Mas não espalhava meu pequeno talento por aí.
O que devia ser exatamente o problema da banda, pra começar.
– Eu toco guitarra, e… – gaguejei – Canto.
Essa última parte foi dita tão baixo que não sei como a Luiza escutou. Ela me olhou e vi que ela estava tentando não rir, mas não deu certo. Um instante depois, ela estava rindo.
Deixei que ela risse, e tirei o boné, injuriado. Não gostava que ela risse de mim. Ela podia pelo menos ter fingido se impressionar, ou ter forçado qualquer outra reação. Ter sido educada, sabe como é.
– É sério isso? – ela me perguntou, entre o riso. Eu não sabia o que tinha de tão engraçado.
– É. E não é engraçado. – adicionei, de cara feia – Você ia gostar se alguém risse de você quando você falava que é desenhista?
– Desculpe. Tem razão. – ela foi parando de rir e limpou a garganta. Mais calma, me olhou com uma careta tímida – E eu não sou desenhista.
– É sim. A melhor que eu já conheci.
– Você não conhece muitas.
Não respondi, mesmo porque, aquilo não seria totalmente mentira. Mas fato era, ela desenhava melhor que qualquer outra pessoa que eu conhecia.
– Obrigada. – ela murmurou, em seguida. Quando a olhei, ela estava corada.
Me senti vitorioso por tê-la feito corar. Era um bom sinal, certo? Ou pelo menos era um sinal de alguma coisa, porque a única coisa que eu tinha conseguido dela até então era zoação com a minha cara.
– Então, você tem uma banda. – ela disse, começando a desenhar algo que eu não conseguia reconhecer – Desde quando vocês estão juntos? A banda?
– Hm, um ano, acho. – pus o boné de volta na cabeça – A gente até já tocou em alguns lugares, mas é difícil.
– Imagino. O que vocês tocam?
– Um pouco de tudo.
– Vocês são tipo uma banda cover?
– Sim, e não. – eu ri – Tipo, a gente faz cover de mil coisas. Mas não somos cover oficial de nada.
– É legal, pra variar. – ela sorriu, e vi que ela estava tentando ser legal por ter rido de mim minutos atrás – Vocês tem alguma música própria?
– Temos, claro. – menti, e então me senti mal – Não. Eu sou meio bom pra escrever, mas preciso da inspiração certa.
– E onde está a inspiração certa? – Luiza quis saber, distraidamente continuando seus traços. Ainda não sabia o que era aquilo.
Você, respondi mentalmente. Corei, e fiquei feliz por ela não estar prestando atenção.
– Não encontrei ainda. – respondi, vagamente.
Foi quando reparei que ela estava olhando pra mim. Não o tempo todo, mas olhadas rápidas, ocasionais, convergindo logo em seguida para o bloco. Quando enfim olhei pro bloco de desenho, reconheci o que ela estava desenhando. Ela estava desenhando o meu rosto, da perspectiva em que o via.
Juro que nunca me senti tão importante que nem nos dois segundos que se sucederam a isso. Ela estava me desenhando. Ela estava desenhando o meu rosto!
Ai lembrei que ela também já tinha feito o mesmo com uma velhinha, com policiais, com cachorros de rua, e quem sabe com quantas outras pessoas totalmente aleatórias que haviam passado por aquela praça. O fato de a Luiza estar me usando de modelo não queria dizer que eu era especial, por mais que eu quisesse acreditar que sim.
Fingi que não tinha percebido que o desenho era meu, e segurei o silêncio, esperando que ela o quebrasse. Eu sabia que ela fugiria de qualquer pergunta que eu fizesse, então era mais fácil esperar que ela perguntasse. Talvez isso me desse abertura pra perguntar alguma coisa de volta, e ela finalmente respondesse.
– Você acha que é isso que você vai fazer da sua vida? – ela perguntou, de repente, mas sem me olhar diretamente – Cantar? Ter uma banda?
– Que pergunta mais filosófica. – brinquei, e dei de ombros – Não sei. Provavelmente não. Eu gostaria que sim.
Ela não disse nada.
– Você quer fazer o que da sua vida? – resolvi perguntar, uma vez que ela não falou mais nada. Ela deu de ombros.
– Não sei ainda.
– Você devia ser ilustradora. Ou alguma outra coisa que mexa com esse tipo de coisa.
– Que tipo de coisa?
– Desenho. É a sua praia, não é? Devia fazer isso.
Como quando eu tinha dito que cantava, ela parou e ficou me olhando. Mas não queria rir. Queria entender até que ponto eu estava sendo sincero. Quando pareceu ter conseguido sua resposta, voltou a desenhar.
– Você ta no colégio também? – tornei a perguntar, aquela pergunta que ela não tinha me respondido. Apesar de eu ter palpites sobre a idade dela, eu podia muito bem estar errado.
– Uhum. – ela murmurou. Achei que não adiantaria perguntar de novo onde ela estudava, então deixei quieto.
– O que você ta desenhando? – resolvi provocar. Vi os cantos da boca dela subirem pra um quase sorriso. Eu já conseguia identificar a minha orelha, e o alargador mínimo nela. Era assim que ela me via? Ou eu tinha mesmo uma orelha tão legal?
– Você. Então tenta não se mexer muito. – Luiza respondeu, e juro que a vi corar de novo. Eu estava ficando bom naquilo.
– Ok. – fingi arrumar a postura e tentei ao mesmo tempo não me mexer, nem olhar pra ela – Quer que eu faça uma pose? Não sei como funciona isso de ser modelo!
– É só ficar como estava, mas tente não virar o rosto muito pra cá.
– Mas ai não vou saber se você está desenhando certo.
– Achei que eu desenhasse bem. – ela fingiu um biquinho. Mais covinhas. Tive vontade de..
Esquece.
– Mas precisa de muita habilidade pra pegar todos os meus detalhes. – brinquei, e ela riu.
– Vou fazer o possível. – ela me olhou demoradamente, então começou a fazer os traços dos meus olhos – E eu sempre posso tentar aperfeiçoar amanhã.
Amanhã? Isso era uma dica certo? Queria dizer que ela queria me ver no dia seguinte, certo?
Caaara!
– Claro que pode. Sempre que quiser.
Tudo bem, talvez eu tenha soado meio babaca, mas eu estava me sentindo babaca. Eu estava me sentindo feliz e um superotário só porque a garota tinha dado a entender que queria me ver no dia seguinte.
Eu estava ficando maluco.
Não me mexi pelo resto do tempo que levou até ela desenhar o meu rosto. Estava perfeito, e ao mesmo tempo, diferente. Diferente porque eu não era tão bonito assim. Meu pescoço era mais comprido, e o meu cabelo não ficava tão legal com aquele boné sujo. A Luiza tinha dado um tratamento louco no que deveria ser a minha imagem. E eu tinha adorado a idéia.
Fui embora com o sorriso dela gravado nos olhos, aquele pequeno trecho de melodia tocando mentalmente e a promessa de vê-la na tarde seguinte.

[continua]

2 thoughts on “Conto: Luiza (parte IV)

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *